Convenção da Biodiversidade quer ampliar áreas protegidas de 15% para 30% do planeta

Países começaram a discutir nesta segunda (24) em Roma texto de tratado a ser assinado em outubro, com metas para 2030 e 2050

O primeiro esboço do tratadointernacional sobre biodiversidade que será assinado em outubro propõe que a extensão de áreas protegidas terrestres e marinhas seja aumentada de 15% para 30% do planeta em 2030.

O chamado “esboço-zero” do tratado foi distribuído nesta segunda-feira (24) a representantes dos 196 países da CDB (Convenção da Diversidade Biológica) que sem encontram nesta semana em Roma, na Itália.

O texto provisório, que começa agora a ser modificado por diplomatas, foi construído em grande medida por cientistas com os quais a presidência da CDB se consultou.

Além de metas para aumentar as áreas protegidas, o documento preliminar propõe que os ecossistemas naturais da Terra não percam nem um hectare até 2030, quando computadas a remoção e a recuperação dessas superfícies. Para 2050, a meta proposta é que as áreas naturais aumentem em um quinto. Isso significaria elevar de 47% para 56% a quantidade de ecossistemas naturais remanescentes no mundo.

O esboço-zero, que ainda deve sofrer muitas modificações até outubro, tem a maioria dos objetivos concretos grafados entre colchetes — padrão diplomático para indicar tópicos ainda abertos a discussão.

Muitas das metas a serem definidas não receberam sugestões no texto inicial. Além dos objetivos para áreas protegidas e cobertura natural, porém, o documento já propõe compromissos concretos para solucionar alguns problemas que afetam a biodiversidade.

Um deles é o de reduzir pela metade a ocorrência das chamadas espécies invasoras, que migram de um ecossistema para outro perturbando sua estabilidade. Outra é dobrar o acesso de habitantes de regiões urbanas e povoadas por pessoas a áreas verdes. E outra, ainda, é reduzir a poluição por plásticos e substâncias tóxicas. Tudo isso até 2030.

Os objetivos da CDB em vigor agora foram aqueles estabelecidos dez anos atrás no encontro de Nagoya, no Japão. Entre eles esteve o estabelecimento dos atuais 15% de áreas protegidas no mundo (média entre 17% em continentes e 10% nos mares). A maior parte das outras promessas adotadas em 2010, conhecidas como “metas de Aichi”, não era balizada por números específicos.

Legado da Rio 92

Se depender do grupo que rascunhou o primeiro documento a ser assinado em 2020, essa limitação será corrigida. Mantido o teor do texto, o documento previsto para finalização em Kunming pode ser o mais ambicioso para a biodiversidade desde a Rio 92, Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, onde a CDB nasceu, 28 anos atrás.

— Mas o que o esboço-zero propõe agora é essencialmente reverter um processo de degradação da natureza iniciado 12 mil anos atrás, que é quando a cobertura de áreas naturais começou a ser reduzida pela atividade humana, e passar a um processo de restauração da natureza — disse ao GLOBO Bernardo Strassburg, cientista do IIS (Instituto Internacional para Sustentabilidade) e professor de economia ambiental na PUC-Rio.

Strassburg, que foi um dos conselheiros da presidência da CDB para a elaboração do esboço-zero, tem sido um dos cientistas mais engajados no esforço de promover metas mais concretas e mais fáceis de averiguar para o tratado.

Em artigo de comentário para a revista “Nature” com colegas australianos e britânicos, ele propõe, por exemplo, que os compromissos de preservação não se limitem a conservar apenas espécies, mas também as superfícies dos ecossistemas onde elas vivem.

Segundo o cientista, para salvar o que resta ao planeta de biodiversidade, não basta apenas a ampliação das áreas protegidas. Por isso ele defende a manutenção de outro dispositivo no tratado, que pede que 60% das áreas protegidas sejam em ecossistemas prioritários, e 10% tenham caráter de conservação integral, barrando qualquer exploração econômica.

— A grande crítica à meta de Aichi pedindo 17% de áreas protegidas terrestres é que países focaram só no número, muito do que foi feito seguiu apenas um critério de mínimo esforço — explica Strassburg, que conclui: — Foram criadas muitas áreas protegidas em lugares em que não fazia muito sentido, porque eram áreas que não tinham muita biodiversidade para proteger. Outras foram criadas em áreas muito isoladas, onde não existia muita ameaça.

Jogo diplomático

Abrigando o bojo da maior floresta tropical do mundo e, também, país mais biodiverso, o Brasil é um dos atores cruciais nas negociações da CDB.

Os diplomatas que representam o Brasil na convenção neste ano terão, porém, o desafio de amortecer as pressões internacionais que o país vem sofrendo pela política ambiental no governo Bolsonaro.

Com um aumento de 30% no desmatamento de um ano para o outro, a pressão para que o país aceite embarcar numa meta internacional para ampliação de áreas protegidas deve aumentar.

O país deve argumentar, como fez em outras cúpulas da CDB, que não é justo o esforço de preservação recair majoritariamente sobre países tropicais, onde resta a maior parte da biodiversidade do planeta.

O GLOBO apurou com diplomatas brasileiros que uma das principais restrições do país ao texto é que faltam referências claras a “meios de implementação”, incluindo recursos financeiros, para as metas de preservação a serem acordadas.

Se essa questão for endereçada, a balança de negociação pode ser equilibrada caso países desenvolvidos aceitem também a proposta brasileira para “repartição de benefícios” da biodiversidade, e “fim da biopirataria”. Isso significa, por exemplo, que medicamentos criados a partir de extratos naturais teriam de pagar royalties a países que preservam a biodiversidade de onde se originou o produto.

Essa é uma demanda histórica que nunca avançou, em grande medida por culpa dos Estados Unidos, que nunca ratificaram a CDB. Sem os EUA no tratado, a maior economia do mundo ficaria de fora da repartição de benefícios financeiros da biodiversidade. Ainda assim, o Brasil vê espaço para atendimento de parte de sua demanda.

Ambição

O grupo de trabalho que elaborou o esboço-zero, ao entregá-lo para a presidência da CDB, pediu expressamente que a convenção busque um tratado “ambicioso” em outubro. Os tópicos mais importantes, porém, ainda estão todos em aberto, e dificilmente serão definidos já em Roma, o segundo de três encontros preliminares antes da cúpula da CDB em Kunming.

A base científica para a discussão na CDB foi em grande medida já levantada pela IPBES (Plataforma Intergovernamental para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos), criada pela ONU. O último relatório desse organismo, publicado em maio de 2019, indica que há mais de um milhão de espécies ameaçadas de extinção na Terra, e o ritmo de extinções verificadas “não tem precedentes” e “está se acelerando”.

Apesar do alerta dos cientistas, a expectativa de todos é que o texto de outubro a ser fechado pela CDB seja bastante diferente da versão de alta ambição do esboço-zero. “Infelizmente”, diz Strassburg.

Um primeiro avanço parcial nas negociações, caso exista, deve ser divulgado até a próxima sexta-feira, quando o encontro na Itália termina.

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