Primeira mulher negra a receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1993, a escritora americana Toni Morrison, que morreu nesta terça-feira, aos 88 anos, escreveu 11 obras, entre romances, literatura infantil e ensaios. Conhecida pela sensibilidade com que revelava o cotidiano das famílias negras americanas a partir do olhar de persongens femininas, Tori teve sucesso com a crítica e o público. Frequentou as listas de mais vendidos do “New York Times” e teve diferentes obras indicadas pela apresentadora Oprah Winfrey. Para homenagear a autora, o Blog do Acervo resgatou duas entrevistas exclusivas concecidas pela americana ao GLOBO em dois momentos bem distintos. A primeira conversa aconteceu durante uma visita de Morrison ao Brasil, em 1990, mas só foi publicada em 1993. A segunda estampou a capa do do Segundo Caderno na edição de 11 de setembro de 2007. Leia abaixo.
‘DEFENDO A IDEIA DE UMA HARMONIA RACIAL NA AMÉRICA‘
Em 9 de outubro de 1993, após o anúncio do Nobel de Literatura para Toni Morrison, O GLOBO publicou uma entrevista inédita, mas que havia sido realizada quando a autora esteve no Brasil, em 1990, pelo jornalista Luciano Trigo. Àquela altura, a americana tinha 62 anos de idade e seus livros, entre eles os consagrados “Amada” e “Jazz”, já haviam sido traduzidos para 28 idiomas.
Alguns de seus romances falam de personagens negros que adotam um “estilo de vida branco”. Fale um pouco sobre sua concepção das relações interraciais nos Estados Unidos.
Defendo a ideia de uma harmonia racial na América, o que implica igualdade de oportunidades no acesso à cultura e ao bem-estar econômico. Eu transfiro essa esperança para meus personagens. Por exemplo, a protagonista de “Pérola negra”, Jadine: por ser muito bonita e ter recebido uma educação refinada, ela não enfrenta hostilidade ou preconceito. Acho que hoje há no mundo muitas mulheres negras como ela. São modelos que posam para capas de revistas, atrizes… Elas não foram formadas para transformar sua negritude numa atitude política. No fundo, é isso que todo mundo devia fazer: esquecer o conceito de raça. Entender que cor da pele não importa mais que cor dos olhos. Qualquer característica física pode ser interessante, glamourosa até. A raça não deve funcionar como elemento de identificação social. O preconceito é um hábito cultural apenas, que pode e deve ser mudado.
No romance “Pérola negra”, Jadine tem uma relação conflituosa com um marinheiro negro orgulhoso de suas origens…
Sim, porque essa mulher, para quem não importa o conceito de raça, se sente atraída por um homem que é exatamente o oposto, porque sua única identidade é a raça, o “sangue”. Para ele, alguém que diga “Não sou preto, sou americano” é suspeito. Então, o confronto que se dá entre os dois é cultural e de classe, e não racial. Não quis tomar partido, estava apenas curiosa para ver o que aconteceria numa situação dessas: duas pessoas negras diferentes que se apaixonam.
A escritora Alice Walker, autora de “A cor púrpura”, costuma retomar valores ancestrais da cultura africana. Fale sobre a importância desses valores na formação da identidade negra.
Acho que um dos aspectos interessantes da cultura americana é este: você não está confinado a seu passado, não é obrigado a sofrer pelos seus antepassados. Qualquer um pode se libertar, começar de novo; esse senso de liberdade em relação ao passado é fundamental. O lado negativo é que isso significa também que os americanos estão sempre esquecendo o passado, porque ele pode machucá-los.
As relações entre brancos e negros nos Estados Unidos estão mudando?
Sim, no sentido em que os negros conquistam cada vez mais posições de poder e liderança na economia. Por outro lado, é comum ainda você ouvir alguém dizer “preto” querendo dizer “pobre” ou “criminoso”. Os negros constituem 15% da população americana, mas 85% da população carcerária nos Estados Unidos. As pessoas associam automaticamente os negros à criminalidade.
A senhora gostaria de ver seus livros adaptados para o cinema?
Não acredito que eles dariam bons filmes, porque o leitor seria obrigado a ver os meus personagens, em vez de imaginá-los. A protagonista de “Amada”, por exemplo, eu não gostaria de ver seu rosto: ele está na minha imaginação, na minha mente. O aspecto de todos os personagens é muito claro para mim, lógico, porque criei as situações que eles vivem e chego a descrevê-los. Mas duvido que algum diretor soubesse exatamente que ator escalar para cada papel. Então, não sou fascinada pela ideia de ver meus livros transformados em filmes, embora meus alunos digam que o destino de um romance é virar um filme, que um livro não é real até que se transforme em cinema. Eu respondo: deixe meus livros como estão, ok?
A senhora gosta dos filmes de Spike Lee? Ele retrata bem os negros americanos?
Sim, muito! O último que vi foi “Mais e melhores blues”. Gosto especialmente dos primeiros filmes de Spike Lee, “She’s gotta have it” e “School daze”, sobre turmas de estudantes adolescentes negros. E claro que ele nunca vai retratar os negros de uma forma completa, é impossível, porque teria que sintetizar 400 anos de história. Mas quando vou ao cinema, não espero que o diretor diga tudo o que há para ser dito sobre conflitos raciais ou sobre a situação do negro na América. Prefiro apreciar os filmes de Spike Lee pelo uso que ele faz da câmera, por exemplo.
‘MEU PAI NÃO PERMITIA QUE O CARTEIRO ENTRASSE NA CASA SE ELE FOSSE BRANCO‘
Em setembro de 2007, o romance “Amada”, clássico de Toni Morrisson escrito em 1987, estava sendo relançado no Brasil pela Companhia das Letras. Foi quando ocorreu esta entrevista conduzida pela repórter Marilia Martins, que então era correspondente do GLOBO em Nova York. A autora tinha 76 anos de idade.
“Amada” é referência em questões éticas trazidas pela herança escravocrata, que os EUA e o Brasil têm em comum. Como imagina que seu livro é lido no Brasil e qual a sua impressão sobre a cultura brasileira?
Eu adoro o Brasil. Uma vez me perguntaram em que país eu iria viver se tivesse que deixar os EUA. Eu disse imediatamente: Brasil. Adorei minhas duas visitas ao país, tive uma impressão excelente da Festa Literária de Paraty (Flip), trata-se de um país muito vibrante. O que me atrai no Brasil é o fato de que é um país imenso, muito diversificado e totalmente irracional. E o mais importante: com uma grande população de origem africana, com uma cultura forte. Uma cultura negra que se sente na literatura, na música, na poesia, na dança, e com uma força incrível.
Muitos críticos consideram “Amada” uma “Medéia” moderna, enfatizando mais o lado ético do que o aspecto político do enredo. A senhora concorda?
Acho que meu livro fala de uma ética da liberdade e pergunta se vale a pena viver numa sociedade violentamente repressiva e discriminatória. E neste sentido o livro permanece como uma interrogação sobre o que existe de herança da escravidão em países que passaram por ela, como o Brasil e os EUA. E sinto que os leitores vão poder facilmente reconhecer as dores de uma sociedade que tanto tempo sofreu com a escravidão. Vão poder sentir o peso dessa herança na sociedade pós-escravocrata, um peso que se paga no cotidiano, com a discriminação surpreendida nos menores gestos, e contra a qual se tem que lutar incansavelmente, minuciosamente. Brasil e EUA têm essa herança da escravidão em comum, ainda que a cultura africana tenha tido caminhos diferentes nos dois países. E acho que meu romance ainda tem muito a dizer para as mulheres, sobre o modo como elas se posicionam nessa sociedade, perguntando-lhes se a voz feminina se faz ouvir ou não. Até aqui, a História, de um modo geral — e também a história da escravidão —, tem sido uma história masculina. Meu livro fala da escravidão feminina, que é uma escravidão dupla. E questiona o sentimento maternal, discutindo eticamente que mundo é esse no qual queremos que nossos filhos vivam. Será que eles poderão ser felizes? Será que eles terão o direito e a liberdade para isso? O que o Brasil de hoje oferece como futuro para uma criança negra?
Os negros vivem melhor nos EUA hoje do que há 40 anos? Qual a sua visão sobre como o país mudou desde as primeiras conquistas do movimento pelos direitos civis nos anos 1960?
Os EUA mudaram muito nos últimos 30 anos. O movimento pelos direitos civis teve vitórias importantes. Os negros vivem melhor, têm mais liberdade, mais empregos, têm direito a cartão de crédito, acesso a boas escolas, à casa própria, a um bom carro. Fazem parte do mercado capitalista. Os negros também conquistaram postos no governo, e agora têm um forte candidato à Presidência, Barack Obama. Então, por um lado, mudou muito. Mas, por outro, aumentou a violência policial contra os negros, especialmente numa cidade grande como Nova York. As comunidades negras são mais vigiadas. A polícia foi recentemente acusada de assassinar jovens negros de periferia em Nova York, o que causou uma forte comoção social. Em resposta, virou moda entre jovens negros entrar em gangues. Daí o sucesso dos rappers.
Qual sua impressão sobre Barack Obama? Os EUA já estão prontos para ter o primeiro presidente negro de sua História?
Adoro Obama, tenho grande admiração por ele, mas não sei se vou mudar meu voto, que inicialmente iria para a Hillary Clinton. È uma candidata excelente, muito preparada, com ideias claras e democráticas sobre como os EUA podem voltar a ser uma grande nação aos olhos do mundo. Bill Clinton foi um grande presidente e que sua mulher pode ser também uma excelente presidente, especialmente para a comunidade negra. Então, hoje me sinto dividida entre esses dois candidatos.
A senhora é otimista em relação a uma vitória democrata nas próximas eleições?
Cautelosamente, sim. A direita roubou o resultado das duas últimas eleições presidenciais e acho que estão preparando alguma ação intimidatória, algum recurso para mudar o resultado mais uma vez em 2008. Eles sempre agem pela intimidação. São violentos, capazes de tudo. E nos EUA as pessoas podem simplesmente não ir votar, você sabe… Muita gente prefere ficar em casa, cruzar os braços e não se meter em política.
É por causa dessa passividade que não existe hoje grandes manifestações contra a Guerra do Iraque, como as que havia nos anos 1960 e 70 contra a Guerra do Vietnã?
Na Guerra do Vietnã, houve convocação. Todos eram obrigados a fazer serviço militar e a ir para o campo de batalha, caso fosse exigido. A Guerra do Iraque tem soldados voluntários: o governo os arregimenta entre os mais pobres da população e lhes paga um salário bem alto para ir para o campo de batalha. Então, por isso, muita gente não se importa com o que aconteça com esses soldados. Os filhos da classe média não estão envolvidos no conflito, e isso faz toda a diferença.
Será que os latino-americanos ilegais nos EUA não estão hoje numa situação próxima àquela em que os negros estavam há 30 anos?
Sem dúvida. É uma demonstração de como o racismo continua forte nos EUA. Acho que os hispânicos ilegais nos EUA estão hoje na situação em que os negros estavam há 30 anos. Eles terão que se unir e reagir, como os negros fizeram. O governo Bush constrói muros na fronteira dos EUA com o México, mas não divulga dados que mostram que a maior porta de entrada de imigrantes ilegais, hoje, é a fronteira do Canadá. Eles não divulgam esses dados e nem reprimem imigrantes de origem britânica. Sabe por quê? Porque acham que eles vão fazer com que os brancos continuem a ser maioria, mesmo com a queda na taxa de natalidade entre eles. Ou seja: o racismo dita as regras na política de imigração.
É verdade que o seu pai considerava os negros moralmente superiores aos brancos e impedia que brancos entrassem em sua casa?
É verdade. Mesmo quando ele recebia o carteiro ou algum serviço de cobrança, não permitia que o funcionário entrasse na casa se ele fosse branco. Mas minha mãe, ao contrário, era sempre muito receptiva a pessoas de qualquer raça. É claro que ela só poderia receber visitas de brancos quando meu pai não estava em casa… Cresci assim, nessa família dividida quanto ao modo como tratar pessoas de raças diferentes. Fui educada numa escola de gente pobre, que tinha alunos de vários tons de pele. Por isso tenho hoje muitos amigos brancos. Aprendi, porém, que o racismo pode aparecer a qualquer momento e que ninguém está imune a ele.
O movimento negro americano quer proibir os rappers de usar três palavras, consideradas violentas e ofensivas (“ho”, diminutivo de whore, prostituta; “bitch”, cadela ou puta; e “nigger”, termo ofensivo para referir-se a alguém de cor negra). O que a senhora acha disso?
Nesse caso é preciso fazer uma diferença: uma coisa é usar essas palavras quando se está na intimidade, de brincadeira; outra é o uso delas em público, num meio de comunicação. Eu sei que muita gente diz que os rappers não podem ser censurados, que muitos negros usam essas palavras no cotidiano. É verdade. Eu sou contra a censura. Mas adoraria que essas palavras simplesmente desaparecessem, espontaneamente, das letras de música e da poesia dos rappers. Eles deveriam pensar nisso: as letras são cantadas por muita gente, inclusive brancos, e podem estar servindo para reforçar atitudes racistas.