Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc – Entre todos os rostos e vozes que ecoam das praças floridas de Lisboa naquele abril inesquecível de 1974, há um que se ergue não com armas, mas com palavras: Manuel Alegre, o poeta-exilado, o semeador de esperanças, o arquiteto lírico da resistência portuguesa.
Se a Revolução dos Cravos nasceu dos gestos dos capitães, também floresceu nas estrofes clandestinas dos que, como Alegre, jamais aceitaram calar o sonho.
Nascido em Águeda, em 1936, Manuel Alegre fez da poesia a sua trincheira desde cedo. Estudante de Direito na Universidade de Coimbra, mergulhou nas lutas acadêmicas, e mais tarde, no serviço militar em Angola, foi uma das primeiras vozes a rebelar-se contra a guerra colonial — um gesto de coragem que o levaria à prisão e, depois, ao exílio em Argel.
Mas nem a distância, nem a repressão, nem o exílio conseguiram calar seu canto. Pelo contrário: em terras africanas, Alegre encontrou na Rádio Voz da Liberdade o megafone invisível para seus versos insurgentes, que atravessavam mares e desertos para chegar, clandestinos, ao coração sufocado de Portugal.
Era através da poesia que ele entrava nas casas vigiadas, nos porões onde jovens cochichavam, nas tabernas onde operários brindavam às escondidas.
Era através da poesia que Manuel Alegre mantinha viva a centelha da liberdade, mesmo nos anos mais sombrios da ditadura salazarista.
Obras como “Praça da Canção” (1965) e “O Canto e as Armas” (1967) não eram meros livros — eram instrumentos de luta.
Seus poemas, como “Trova do Vento que Passa” ou “Nambuangongo Meu Amor”, tornaram-se hinos clandestinos de uma geração que, entre lágrimas e esperança, recusava-se a aceitar a noite como destino.
Quando a Revolução dos Cravos irrompeu, com seus cravos vermelhos adornando os fuzis e seus soldados abraçando o povo, foi como se as palavras de Manuel Alegre, semeadas anos antes, finalmente tivessem florescido em carne e canto.
E foi então que o poeta, emocionado, escreveu sobre aquele 25 de Abril com a precisão e a ternura de quem sabe que não há maior revolução do que reencontrar-se com a própria dignidade:
“Não foi um golpe de Estado: foi o sonho que tomou conta das ruas, foi a esperança que floriu nos canos das espingardas, foi o povo que se reencontrou consigo mesmo.
Foi o direito de existir e de dizer não, foi o direito de escrever e de cantar, foi o fim da censura, o fim do medo, o fim do silêncio.
25 de Abril foi a manhã inteira que Portugal esperou durante quase cinquenta anos.
Foi a liberdade voltando, como se fosse um rosto amado, como se fosse um filho perdido.
25 de Abril não é passado: é o presente vivo e é também o futuro em que ainda precisamos acreditar.”
Manuel Alegre não apenas descreveu a Revolução dos Cravos — ele antecipou-a, semeou-a e cantou-a muito antes de ela acontecer.
Se hoje se diz que há revoluções feitas por soldados e por povo, é preciso dizer que há revoluções feitas também pelos poetas. E Manuel Alegre foi um dos seus mais fieis e apaixonados artífices.
Sua obra e sua coragem foram reconhecidas em vida: em 1999, foi galardoado com o Prémio Pessoa, pela sua contribuição insubstituível à poesia e à consciência nacional portuguesa.
Francisco Pinto Balsemão, ao justificar a escolha, afirmou que Alegre representava “um Portugal aberto ao mundo e um humanismo universalista atento a tudo o que nos rodeia.”
Além disso, foi distinguido com o Prémio da Crítica pelo seu livro “Senhora das Tempestades”, onde sua poesia mergulha nas profundezas da condição humana, na dor da travessia, na alquimia da palavra, como nestes versos sublimes:
“Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades / Senhora da vida que passa e do sentido trágico / Senhora do poema e da oculta fórmula da escrita / Senhora da minha vida Senhora da minha morte.”
Em 2017, o mais prestigioso prêmio da literatura lusófona, o Prémio Camões, coroou a trajetória do poeta que nunca se rendeu, que nunca negociou o brilho amargo da liberdade por nenhuma outra glória efêmera.
Ao retornar a Portugal após o 25 de Abril, Manuel Alegre continuou a servir a liberdade não apenas com seus poemas, mas também com seu trabalho político, como deputado, membro do Governo e Conselheiro de Estado — sempre exercendo o papel do intelectual que não se vende, do artista que não abdica da lucidez crítica, do poeta que recusa esquecer a promessa feita às flores de abril.
Manuel Alegre é, assim, mais do que uma testemunha da Revolução dos Cravos: é um de seus construtores invisíveis, um dos que souberam cantar a liberdade quando ela ainda parecia apenas uma miragem.
A sua poesia é a memória viva de que, mesmo no mais longo inverno, a primavera existe.
E que mesmo sob as botas da opressão, há sempre, latente, um país inteiro que espera florescer.
Porque enquanto houver um poeta capaz de cantar o impossível, haverá sempre um Abril possível.