Chico Buarque e a canção que abraçou a Revolução dos Cravos. Por Flávio Chaves

Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc –  Há momentos em que a história escapa dos tratados e dos discursos oficiais, e corre descalça pelas ruas, entra pelas frestas das janelas, penetra nos lares, e transforma-se em música.
Assim foi quando Chico Buarque, exilado da sua própria pátria, escreveu “Tanto Mar” — uma canção que, mais do que uma homenagem, é um abraço lírico e solidário à Revolução dos Cravos em Portugal.

Chico, voz insubmissa da resistência brasileira contra a ditadura militar, compreendeu imediatamente a grandeza do que acontecera em Lisboa no 25 de Abril de 1974.
Não viu apenas a queda de um regime — viu o impossível tornar-se carne, viu a esperança transbordar as praças, viu a utopia vestir-se de gente e flores e música.
E então, comovido e distante, escreveu:

“Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guardo um cravo para ti…”

Esses versos, simples e imensos, atravessaram oceanos, fronteiras e censuras.
Era como se Chico Buarque — impossibilitado de viver sua própria revolução no Brasil subjugado — oferecesse a Portugal um cravo vermelho, um pedaço da sua saudade, um pedaço da sua esperança.
Era como se dissesse: “Viva por nós também. Dance por nós. Floresça por todos que ainda gemem sob botas e silêncios.”

A música “Tanto Mar” é mais do que uma carta de amor: é uma elegia ao sonho partilhado entre povos irmãos, entre histórias de resistência, entre lágrimas comuns.
Chico entendeu, melhor que muitos historiadores, que não há mares suficientes para separar duas nações que sangraram e sonharam juntas.
Portugal e Brasil, atados por línguas, dores e esperanças, encontraram na canção de Chico uma ponte invisível — feita de música, de memória, de liberdade ainda por conquistar.

Mas a história, cheia de ironias e intempéries, também atingiu “Tanto Mar”.
Quando a Revolução dos Cravos, e o processo revolucionário que se seguiu, começaram a sofrer reveses — quando as esperanças deram lugar a dificuldades políticas, crises e revisões amargas —, Chico sentiu a necessidade de escrever uma segunda versão da música, bem menos festiva, bem mais dolorosa.
No novo texto, ele cantava:

“Já foste à festa, pá?
E já colheste o teu cravo?
E já brincaste ao Carnaval?”

O tom agora era outro. Havia uma sombra no meio da festa.
Havia uma dor silenciosa — a consciência de que revoluções, mesmo as mais lindas, também têm suas invernos, seus desenganos, suas perdas.

Chico Buarque, que sempre soube que cantar é também sofrer, que celebrar é também resistir, que amar é também lamentar, transformou “Tanto Mar” não apenas em um hino da Revolução dos Cravos, mas em uma lição profunda sobre a beleza e a fragilidade dos sonhos humanos.
Sobre como é fácil semear a esperança e como é difícil cultivá-la.
Sobre como é grandioso ver um povo levantar-se — e como é duro vê-lo tropeçar.

Ainda assim, “Tanto Mar” permanece, até hoje, como uma oferenda intacta.
Um cravo eterno enviado de um país irmão a outro, atravessando as águas e os tempos, lembrando que a liberdade, mesmo quando esmorece, é uma canção que nunca morre — apenas espera, paciente, que alguém, em alguma praça, em alguma madrugada, a cante de novo.

Chico Buarque — com sua voz rouca, sua ternura rebelde, sua alma cheia de mares e abismos — deu a Portugal, e ao mundo, uma música que não é apenas memória: é uma bússola.
Uma lembrança de que, enquanto houver um homem livre, enquanto houver uma mulher que sonha, enquanto houver um cravo no coração de alguém, haverá sempre tanto mar, tanto sonho, tanto abril ainda por viver.