A Primavera dos Cravos semeou a esperança e fez florescer a liberdade em Portugal. Por Flávio Chaves

   Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc –  Há datas em que a história não apenas vira uma página — ela rasga o livro velho, sopra as cinzas do medo e semeia flores sobre o solo endurecido da opressão. Em 25 de abril de 1974, Portugal não apenas acordou para um novo dia; despertou para si mesmo, libertando-se das amarras de uma ditadura longa e extenuante que, por 48 anos, sangrara lentamente sua alma e suas esperanças.

Desde 1926, quando um golpe militar mergulhou o país nas sombras, Portugal caminhava sob o peso sufocante de regimes autoritários. Mas foi com a ascensão de António de Oliveira Salazar, em 1932, que o país conheceu a face mais severa da opressão institucionalizada. Salazar, um professor de finanças com espírito autoritário e crença inabalável na ordem conservadora, teceu ao longo de décadas uma teia de censura, medo e estagnação que asfixiava tanto os corpos quanto as ideias.

O Estado Novo — como se auto intitulava — era, na verdade, um velho império de silêncios impostos, de prisões sem processo, de censura brutal sobre jornais, livros, canções, pensamentos. Enquanto o mundo se reinventava, Portugal permanecia estagnado, como uma casa antiga e mofada que se recusa a ruir, mas também se recusa a viver. Salazar governava como quem guarda uma relíquia em um cofre, preservando um país inteiro da liberdade e da mudança, sob a justificativa de proteger a ordem e os valores tradicionais.

Mesmo após a queda de Salazar, afastado em 1968 por motivos de saúde e sucedido por Marcelo Caetano, o sistema de repressão permanecia intacto. A censura seguia mordendo palavras; a polícia política, a temida PIDE, seguia sufocando as vozes livres; e a juventude, condenada à guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, seguia enterrando seus sonhos em trincheiras distantes. Era um país adormecido, cativo de seus próprios fantasmas.

Mas a história, essa costureira paciente do tempo humano, sabia que até as ditaduras mais longas têm seu limite, que mesmo os povos mais feridos conservam dentro de si uma centelha de insurreição. E foi no ventre desse cansaço, dessa dor acumulada em gerações, que nasceu a Revolução dos Cravos.

Não foi com espadas, nem com canhões ensanguentados que a liberdade encontrou seu caminho. Foi com cravos — flores simples, vermelhas como o sangue dos que resistem e dos que sonham, flores anônimas que se tornaram o estandarte de uma revolução rara e quase impossível: uma revolução sem sede de vingança, sem a fúria devastadora das armas, mas com a dignidade intacta dos que já sofreram demais para querer perpetuar a dor.

Os capitães de Abril, rostos jovens moldados pela disciplina militar mas almas secretamente incendiadas pela sede de justiça, avançaram pelos quartéis e pelas ruas como se o próprio vento os carregasse, como se a memória dos presos políticos, dos exilados, dos censurados e dos camponeses esquecidos soprasse sobre eles um mandato silencioso e sagrado: restaurar a dignidade humana. E foi assim que, em Lisboa e em todo o país, a multidão saiu das casas, das fábricas, dos campos, trazendo nos olhos a incredulidade e no peito a coragem, como quem sente que, enfim, a história se curva ao desejo dos homens e das mulheres que já não aceitam viver de joelhos.

O velho edifício do Estado Novo, corroído pela própria incapacidade de mudar, desmoronou diante da força pacífica de um povo que dizia basta — e dizia com flores, com abraços, com esperança que atravessava as bocas e as praças como uma primavera que ninguém mais conseguiria conter.

O 25 de Abril foi, portanto, mais que uma revolução política; foi uma revolução da alma portuguesa. A queda da ditadura não se deu apenas nos palácios ou nos quartéis — deu-se, sobretudo, nas consciências, no rompimento interno que cada cidadão fez contra décadas de silêncio imposto, de medo hereditário, de noites eternas sem amanhecer.

Ali, naquele dia radioso e improvável, Portugal não apenas se libertou de um regime: reinventou-se como pátria viva, aberta ao futuro, capaz de sonhar outra vez. Ali, a terra castigada pela nostalgia, pelos fados tristes e pelas saudades intermináveis, ousou escrever um verso novo no seu poema antigo — um verso que dizia, alto e em coro: liberdade.

E que fique para sempre inscrito na memória dos povos: nem todas as revoluções precisam sangrar para serem verdadeiras. Às vezes, basta um punhado de cravos vermelhos e um povo que, cansado de esperar, decide florescer.