Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc – No dia 1º de dezembro de 1902, o Brasil assistia ao nascimento de uma obra monumental que atravessaria gerações como um marco da literatura nacional e um retrato profundo de nossa identidade. “Os Sertões”, do escritor Euclides da Cunha, lançava ao mundo muito mais que um livro; apresentava uma análise multifacetada do Brasil profundo, reunindo jornalismo, literatura e história em uma narrativa que ainda hoje reverbera.
A obra nasce da experiência de Euclides da Cunha como correspondente do jornal “O Estado de S.Paulo” durante a Guerra de Canudos (1896-1897), conflito emblemático ocorrido no sertão da Bahia. Naquela região árida, Antonio Conselheiro e seus seguidores construíram uma resistência ao poder republicano, que culminou em um dos mais sangrentos episódios da história brasileira. Euclides, inicialmente alinhado à visão oficial de que Canudos representava uma ameaça ao progresso republicano, testemunhou a brutalidade da guerra e os equívocos do governo.
O impacto dessa vivência transformou Euclides, levando-o a compor “Os Sertões” como uma denúncia, uma reflexão e um tratado sobre o Brasil. A obra transcende a narrativa histórica ao mergulhar nas contradições do país, expondo as raízes de sua desigualdade e as dificuldades de um povo muitas vezes incompreendido e negligenciado.
A grandeza de “Os Sertões” também reside em sua estrutura cuidadosamente dividida em três partes que, embora distintas, estão profundamente conectadas. Na primeira, “A Terra”, Euclides descreve minuciosamente a geografia e o clima do sertão brasileiro, oferecendo um panorama quase científico da paisagem inóspita que molda a vida e a resistência de seus habitantes. Já na segunda parte, “O Homem”, o autor concentra-se no sertanejo, apresentando-o como a figura central da narrativa. Aqui, o sertanejo é humanizado e exaltado por sua força e resiliência diante das adversidades, enquanto Euclides desafia os estereótipos preconceituosos da época. Por fim, em “A Luta”, o autor relata, com uma precisão impressionante, os eventos trágicos da Guerra de Canudos, descrevendo os confrontos, a destruição do arraial e o massacre final. Essa última parte é um testemunho doloroso das injustiças sofridas pelos sertanejos, encerrando a obra com uma reflexão pungente sobre os conflitos entre poder e resistência.
A importância de “Os Sertões” vai além de sua narrativa. A obra representa um marco na literatura brasileira por sua abordagem interdisciplinar, combinando sociologia, antropologia, história e literatura. Euclides da Cunha revela as tensões entre o Brasil urbano e o rural, entre o progresso e o atraso, entre a modernidade e as tradições ancestrais.
O livro também rompe paradigmas ao questionar o modelo de desenvolvimento imposto pela República e ao expor as desigualdades sociais que permanecem, em muitos aspectos, atuais. A figura do sertanejo, elevada à condição de herói trágico, ecoa como símbolo de resistência e dignidade.
O exemplar da primeira edição de “Os Sertões”, que pertenceu ao poeta Cassiano Ricardo e foi doado à “Casa Euclidiana” em 1947, é um testemunho do impacto duradouro da obra. A Casa Euclidiana, em São José do Rio Pardo (SP), é hoje um centro de estudos dedicado a preservar a memória de Euclides da Cunha e a compreender a profundidade de sua contribuição para a cultura brasileira.
Embora retrate eventos do final do século XIX, “Os Sertões” permanece atual, oferecendo um modelo simbólico para refletirmos sobre as resistências contemporâneas. O arraial de Canudos, com seu povo marginalizado que desafiou as estruturas do poder republicano, representa uma luta contra a opressão que ecoa nos movimentos sociais de hoje.
Assim como em Canudos, vemos nos dias atuais uma tensão persistente entre a periferia e o centro, entre as vozes populares e as instituições de poder. Os sertanejos de Euclides da Cunha, descritos como heróis trágicos, podem ser vistos como uma metáfora para as comunidades que, ainda hoje, enfrentam as desigualdades estruturais, a violência e a falta de acesso aos direitos básicos.
Em pleno século XXI, “Os Sertões” convida à introspecção: quem são os “sertanejos” de hoje? Quais são as “Canudos” que resistem contra o poder hegemônico? A obra de Euclides nos oferece um espelho incômodo, mas necessário, para questionarmos nossas escolhas enquanto sociedade.
“Os Sertões” é mais que um clássico; é uma obra indispensável para entender o Brasil. A leitura do livro nos convida a refletir sobre nossa história, nossa identidade e os desafios que ainda enfrentamos como nação.
Euclides da Cunha, com sua sensibilidade e olhar crítico, eternizou em palavras as dores e as esperanças de um povo. Suas reflexões continuam a iluminar debates sobre a desigualdade social, as relações de poder e a busca por um país mais justo e inclusivo.
A leitura de “Os Sertões” é um percurso ao coração do Brasil. É um convite à introspecção, à empatia e ao entendimento de que as histórias de nosso passado são essenciais para moldar nosso futuro. Com sua complexidade e beleza, a obra de Euclides da Cunha permanece como um dos maiores monumentos literários de nossa história, um verdadeiro legado para a humanidade.