Por José Paulo Cavalcanti Filho – Escritor, poeta, membro das Academias Pernambucana de Letras e Brasileira de Letras e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade
RECIFE – O Estatuto da Cidade (de 2001) permitiu, ao Poder Público, determinar “parcelamento, edificação ou utilização compulsória do solo urbano, sub-utilizado ou não”. E, por mais de 20 anos, governos de Estado e Prefeituras nunca editaram nenhuma regra para lhe dar efetividade. Até que o governo petista do Rio Grande do Norte fez lei, neste sentido, e muitos decidiram imitar. Aqui foi a Prefeitura do Recife, com a Lei 18.966 (de 26/06/22). Melhor explicar. Com essa lei, por decisão da Prefeitura, inclusive usando um IPTU progressivo no tempo, o proprietário pode perder o direito de propriedade sobre seu bem. Ocorre que há dois problemas sem solução, nessa invenção – mais uma rima sem solução, com licença de Drummond.
Primeiro Problema é que isso ocorreria quando o imóvel não estivesse cumprindo a “função social da propriedade”. O que nos leva a examinar a questão jurídica da utilização dessa tão falada, e pouco entendida, “função social”. O conceito de uma “função social”, que daria fundamento ético ao exercício do direito de propriedade, tem origem no pensamento católico do início do século 20. Sobretudo com os dois Jacques, Maritain e Mounier. Entendida essa função, à época, como “compromisso” baseado na consciência individual. Um “serviço” em função do bem comum. Reverenciada como importante novidade jurídica, acabou incorporada à Constituição alemã de Weimar (1919) – fortemente influenciada pela prática social-democrata de então.
Apesar do interesse teórico despertado, na Alemanha, acabou tendo nenhum significado prático. Por serem, as objeções técnicas que recebeu, fortes demais. E logo foi reconhecida, pelo judiciário do país, apenas como um simples critério de interpretação. E aplicável, somente, aos meios de produção. Sendo esse conceito, mesmo aqui, insuficiente: porque, segundo o renegado Kautsky (The economic doctrines), “a teoria marxista distingue meios de produção e terra”.
Entre as correntes teóricas que foram a partir de então se formando, no mundo, chegou a ganhar força a ideia de um “direito-função”, em que a propriedade mereceria garantia só quando exercida em proveito da coletividade. Contra a tradição liberal dos direitos subjetivos, que reconhece esse direito independente de qualquer controle de valor. Mas também essa ideia foi, em pouco tempo, abandonada. Basicamente, por conta da ausência de consensos mínimos em relação ao conteúdo que poderia configurar uma “função” dita “social”. Sendo o conceito, na literatura jurídica, definido como “vago”, “fluido”, “apenas um princípio”, “causador de embaraços tortuosos aos juristas”.
Talvez por conta dessas dificuldades técnicas é que seu reconhecimento acabou sendo limitadíssimo. Na Itália por exemplo, apesar de debates candentes (por quase 2 anos, basta ver as atas das reuniões preparatórias), não foi incorporado ao Código Civil de 1941. Constando, sem que se entenda, na Constituição de 1947. Talvez porque, aliada da Alemanha na Segunda Guerra, decidiu o governo italiano copiar a Constituição do país amigo. Em solitário enunciado, sem nenhuma regra de aplicação. Dando-se que logo depois, numa espécie de ironia, a nova Constituição alemã de 1949 acabou substituindo esse conceito de “função social” pela ideia de uma propriedade vinculada apenas “ao bem comum”. Mas já era tarde; e ficou, na italiana, sem nenhuma função. Não está na Constituição portuguesa, de 1976. Mas sim na espanhola, de 1978, por conta da influência da Constituição Italiana em sua redação. Novamente aqui, como antes, só um enunciado. Sem uma única regra de aplicação. E, mesmo quando reconhecida nestes dois países, é só um mero princípio. Sem que lhe deem qualquer substância, seus ordenamentos jurídicos.
Pela Constituição brasileira de 1946, a propriedade deveria servir ao “bem estar social”. Passando a ter, na Constituição de 1967, fundamento na tal “função social de propriedade”. A redação foi mantida, na Constituição de 1988. Ocorre que dita expressão “social”, em nossa nova Constituição, tem conceito não unívoco. Basta ver que, nos seus 7 primeiros artigos, aparece com 8 significações muito diferenciadas. Sem que seja generalizada, sua aplicação. E nosso judiciário, a partir daí, vem reconhecendo inclusive que possa, uma simples preservação da natureza, cumprir a “função social da propriedade rural”. Mesmo quando não lhe dê, o proprietário, qualquer uso. Sobram dúvidas. Se referência dessa função social for o tamanho do bem, uma grande propriedade poderia ser sempre expropriada. Mesmo quando produtiva. Mas também o seria um edifício, uma fábrica, um shopping center. Se for produtividade, pequenos espaços estariam também em risco. No campo e nas cidades. Se for qualidade no uso, então, o dissenso seria amplíssimo. Havendo casos, inclusive, em que uma dessas referências poderia ser atendida, enquanto outras não o serão. Sem caminhos seguros a seguir, pois, no tema.
No mais, em nosso ordenamento jurídico, vai tendo um tratamento caótico. Surge no Estatuto da Cidade (2001). Mas é abandonada no Código Civil (2002), substituída por uma “finalidade social”. Decididamente não há unidade, no tema. Assim, para dar mínimos de dignidade ao conceito, é preciso produzir previamente algum tipo de consenso em relação ao seu conteúdo. Se fosse possível, bom lembrar. E não é.
O segundo problema é o instituto da Retrocessão (Código Civil, art. 519). Quando o Poder Público “não der, ao bem, o destino declarado no ato expropriatório” (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro). Regra que tem uma única exclusão, o Decreto-Lei 3.365/41 (art. 5º), destinado a loteamento populares. Em bom português, o Poder Público pode apenas fazer, nos referidos imóveis expropriados, ditos loteamentos. Só isso. Nem conjunto populares, nem Casa Verde Amarela (Minha Casa/Minha Vida), nem outros projetos, nada. O que significa uma escassíssima utilização possível do bem arrancado ao seu proprietário. Porque, em qualquer outra situação pensada, o imóvel vai acabar voltando ao anterior proprietário. Em razão da já dita Retrocessão.
Por tudo, então, deveria nossa Prefeitura ver esse tema com mais atenção. E esquecer. Como dizia o ministro vice-presidente (em 1937) do Supremo, Eduardo Spíndola, “quando se vai demasiado longe, o progresso consiste em regredir”. Até porque já se prevê o que vai acontecer. Será só mais uma Lei que não vai funcionar. Salvo servir como propaganda política para render alguns votos, aos gestores públicos, nas próximas eleições. É pouco, escusas. Não vale a pena.