Cada qual na sua caixa

Por José Nêumanne Pinto*

Às vésperas da chegada do verão e das festas de fim de ano, as atenções do Brasil voltam-se para a Copa do Mundo da Fifa, a transição do desgoverno Bolsonaro para a frente amplíssima comandada por Lula e os palpites dos militares sobre a liberdade da palavra e da ação das instituições democráticas. Em jogo estão a paz e a prosperidade de um País ameaçado.

Em óbvio abuso do nepotismo, o treinador da seleção nacional, Adenor Bachi, vulgo Tite, mantém um filho na comissão técnica, pôs o gente fina Dani Alves no avião para o Qatar e manteve no Brasil o craque do Brasileirão, Gustavo Scarpa, do Palmeiras.

Treinando no Barcelona B, o lateral direito baiano está distante de atender às exigências da disputa de um torneio rápido e de excelência. Mas exerce, segundo notícias da cobertura da aventura nas Arábias, a habilidade de pandeirista-mor no ônibus que transporta o time do hotel para os estádios e de volta. A ausência do melhor jogador do mais disputado campeonato nacional do planeta torna o sonho do hexa uma miragem nos desertos dos emirados.

Com 60 milhões de votos na bagagem, o ex-dirigente sindical Luiz Inácio Lula da Silva, compareceu na mesma semana ao Centro Cultural do Banco do Brasil para escalar a equipe que receberá os dados oficiais do desgoverno do ex-presidente em exercício e de folga, Jair Bolsonaro, para começar o ano novo conduzindo a reconstrução do Brasil destroçado. No discurso de abertura dos trabalhos, ele exaltou a isonomia ao lembrar que os derrotados na disputa eleitoral não são menores do que os vencedores. Conceito vago, mas precioso.

Cometeu, porém, o deslize inoportuno de tratar sua terceira gestão presidencial como oportunidade para se vingar do juiz que o condenou, Sérgio Moro, e do procurador que o acusou, Deltan Dallagnol. Este lembrou, oportunamente, que o primeiro não foi o único magistrado a apenar o chefão do Partido dos Trabalhadores (PT), mas teve a companhia de mais nove. E agora? A mancada não impedirá o vencedor de exercer o terceiro mandato, mas este perdeu a oportunosa ensancha de virar a página e manter no esquecimento as vantagens que recebeu da cúpula do Poder Judiciário para disputar o pleito.

Outra falta de oportunidade dessa fala foi a confissão de descrença no teto de gastos e, por extensão, na estabilidade fiscal. Nisso ele não difere do antecessor desastrado, mas, como este, jogou no tal do mercado uma bomba desnecessária e infeliz. Lula manterá seu posto no pódio dos ex-presidentes mais populares se conseguir cumprir a promessa de tornar possível aos brasileiros mais pobres fazerem três refeições ao dia. Chorou. Foi aplaudido.

Sua frente amplíssima protagonizará um capítulo bom da história se conseguir os prodígios possíveis de dar emprego e título de propriedade senão a todos pelo menos à maioria, como lembrou o jurista Joaquim Falcão em entrevista no canal José Nêumanne Pinto no YouTube. Para tanto terá de usar os melhores gestores de quaisquer posições ideológicas na administração de uma economia debilitada pela educação fragilizada pela má gestão e pelo desperdício de recursos por uma máquina pública dispendiosa e ineficiente.

Para atingir tal meta, Sua Excelência terá de contar com um Congresso que entenda que orçamento não combina com secreto, um Judiciário mais judicioso e comandos militares infensos à lorota de que suas dragonas e canhões os credenciariam para assumirem o poder moderador. Que, aliás, em vez de moderar, assanha. A intromissão do Ministério da Defesa na Justiça Eleitoral é uma iniciativa kafkiana. A nota imprópria assinada pelo titular, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, se intrometendo na tarefa da Justiça Eleitoral para caçar no ovo das urnas eletrônicas o pelo da fraude é de um ridículo atroz. Mas caiu no vazio, como era de esperar.

E muito menos era de esperar a nota de 31 linhas assinada pelos comandantes da Marinha, almirante Almir Garnier Santos; do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior. Claramente destinada a deter os ímpetos dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), em especial entre eles o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, é de uma inutilidade limítrofe à tragédia institucional e à comédia de caserna.

A defesa dos militantes que se apropriam da bandeira nacional para pedir ditadura, ou seja, liberdade para cassar a liberdade dos civis, tendo como base o dever militar de garantir o contrário, de acordo com a Constituição, recomenda a volta dos signatários ao grupo escolar.

Embora, na verdade, os membros dos tribunais superiores que se aproveitaram da anarquia reinante no desmantelamento do Estado e das instituições no quadriênio Bolsonaro também precisem ser lembrados de que não detêm o poder do paraguaio José Gaspar Rodríguez de Francia, retratado no genial romance de Augusto Roa Bastos, Eu o Supremo.

Ao prestar juramento ao pavilhão pátrio, cada alto magistrado deve, como Tite, Lula, deputados, senadores e comandantes de quaisquer tropas, limitar-se ao poder descrito na Constituição de 1988. O que não fizeram Ricardo Lewandowski, ao rasurar o artigo que impede a um servidor de exercer cargo público por oito anos após sofrer o impeachment, e Dias Toffoli, ao usurpar o dever do Ministério Público Federal para abrir inquéritos judiciais.

Essa conclamação a cada qual na sua caixa, conforme prevê a lei maior, não estaria completa se não fosse lembrado, só por exatidão histórica, que ambos foram nomeados por Lula da Silva. O princípio de cada um no limite permitido pela ordem democrática vigente será a primeira garantia de que haverá o progresso, acrescentado à bandeira pelo lema positivista do autores do primeiro golpe dos fardados, o que extinguiu o império dos Bourbouns e criou esta República, que tenta mais uma vez, fugir da pecha do diminutivo republiqueta.

É útil adicionar que o conceito também vale para o ex, que ora antecipa seu lazer, irresponsavelmente. Jair Bolsonaro terá um papel histórico se também cuidar apenas do que deve: liderar a oposição à frente amplíssima, que passará a governar o Brasil, legitimamente. Sem urnas fraudadas nem baionetas em riste.

*Jornalista, poeta, escritor e colunista de O Antagonista