Pedro Doria
O Globo
Na última terça-feira, executivos do Google no Brasil reuniram imprensa, sociedade civil, academia, gente de tecnologia em geral para um evento que realizam todo ano. Assim como fazem empresas digitais por todo o mundo, os responsáveis de cada área alternam-se no palco para falar dos planos nos próximos meses, expor a visão que o Google tem para suas atividades no país.
Possivelmente passou despercebido para muitos presentes que, nas entrelinhas, estava ali também uma visão de Brasil que pouco enxergamos. Não havia, neste ano eleitoral, políticos na plateia. É uma pena. Esquerda e direita teriam muito a aprender.
CRIAR ENDEREÇOS – Um dos primeiros planos anunciados pela empresa é criar endereços numéricos, georreferenciados por mapas, para aqueles lugares que não têm endereço. São, principalmente, casas pequenas e pobres nas muitas favelas brasileiras.
A gente não costuma pensar que exista lugar no Brasil sem endereço, mas em nosso país há mais gente com celular do que com endereço, tantas são as ruelas e becos sem nome ou registro nas prefeituras da vida. Ter endereço quer dizer poder fazer buscas de preços mais baixos para comprar on-line. Integração ao mercado de consumo.
O Google também mapeou os restaurantes gratuitos no Brasil que passa fome, uma parceria com a Ação da Cidadania. É para que uma busca simples ajude a localizar o mais próximo para quem deseja doar alimentos, também para quem precisa comer.
OUTRA INOVAÇÃO – A empresa distribuirá bolsas de estudo a quem quiser dominar tecnologia digital, aprendendo no nível técnico profissões do século 21, como gerência de nuvem, análise de dados e design de interfaces. Há investimento também em capacitação voltada para mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+.
—Quando comecei — contou o presidente local da companhia, Fabio Coelho —, multinacionais vinham ao Brasil atender às camadas mais ricas da sociedade. Mudou.
Sim, mudou, porém é mais que isso. A ação do Google é política, e existe uma ideologia que a sustenta. Há duas ideologias dominantes no Vale do Silício de hoje.
MENTES LIBERADAS – Mark Zuckerberg, Elon Musk e investidores como Peter Thiel ou Marc Andreessen representam um libertarismo cada vez mais hostil ao Estado, mais hobbesiano na visão de que tudo deveria ser possível para quem consegue.
E existe ainda, vivo, o tradicional liberalismo hippie do norte da Califórnia, preocupado com inclusão social, sonhando um mundo sem fronteiras e buscando tornar compatíveis capitalismo e civilidade. Mais Locke, menos Hobbes. É a ideologia de Tim Cook, Bill Gates — e da turma do Google.
O Google não está sendo “bonzinho”. Está criando mercado consumidor para seus produtos. Mas a ideologia conduz a ação. Quando olha para o Brasil, não vê só o andar de cima; vê, isto sim, um universo de gente com sonhos que, com algum estímulo e um tanto de ajuda, se levanta por conta própria.
DIREITA CARICATA – Por aqui, entre nós, a direita vai se tornando lentamente uma caricatura do pior de si mesma, aprovando, mesmo que envergonhada, a barbárie das incursões policiais nos morros e nas periferias.
Enquanto isso, num preconceito quase infantil com o sistema capitalista, a esquerda se recusa a ver que, nas periferias, um dos sonhos vivos é empreender. É montar um negócio, ser o próprio patrão, empregar gente. Há um mar de startups pulsando para nascer no Brasil, precisando apenas de um empurrão. É o tipo da política pública que nem nossa direita nem nossa esquerda enxergam.
A gente joga PIB fora com educação ruim e políticas de incentivos voltadas só pra quem já é rico. Por que é preciso uma multinacional para enxergar o evidente?