No filme Margin Call – O Dia Antes do Fim (EUA, 2011), um banco americano de investimentos demite 80% de seus empregados durante o colapso financeiro de 2008. O personagem de Kevin Spacey é o chefe do setor de risco da empresa e, logo após os desligamentos, batendo palmas, ele dirige algumas palavras aos funcionários restantes:
“Vocês ainda estão aqui por uma razão. Oitenta por cento do nosso pessoal acaba de ser mandado para casa. Passamos a última hora dizendo ‘tchau’. Eram boas pessoas, e eram boas no que faziam, mas vocês são melhores. Agora que elas foram embora, não vamos mais pensar nelas. Esta é a oportunidade de vocês. (…) Três em cada sete pessoas que estavam entre vocês e o cargo dos seus chefes já não trabalham mais aqui. Esta é sua chance.”
Em outro filme, Amor sem escalas (EUA, 2009), o infortúnio da demissão é rapidamente convertido na oportunidade de buscar os próprios sonhos, conforme orientação dada pelo personagem de George Clooney, que viaja pelo mundo para dispensar pessoas.
Técnicas como as dos personagens “se tornaram úteis no mundo corporativo contemporâneo ao transferir o ônus da responsabilidade sobre a empresa para os assalariados e administrar estes em termos de sua felicidade pessoal”, escrevem o psicólogo espanhol Edgar Cabanas e a socióloga marroquina Eva Illouz no livro Happycracia: fabricando cidadãos felizes, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Ubu.
Na publicação, os autores percorrem os rastros de perdas e mal-estar deixados pelo discurso que estabelece a felicidade individual como meta suprema de vida e destacam os efeitos colaterais em relação aos âmbitos pessoal, profissional e social.
No mercado de trabalho, a felicidade — até então um objetivo esperado a partir da atividade laboral — se tornou um requisito para a contratação, manutenção e promoção do cargo.
Assalariados felizes representam a garantia de que “trabalharão ao máximo, continuarão motivados, sentirão prazer pelo que fazem e aumentarão a produtividade”, exemplificam no livro.
Especialmente diante de adversidades, com a promoção de atitudes como a resiliência e a autogestão, caberia aos funcionários os custos psicológicos das fragilidades e instabilidades de uma empresa.
Isso quer dizer que não importam as condições de trabalho, se são precárias ou exaustivas: a receita transmitida ao trabalhador é a de que com mais empenho, resiliência e positividade ele pode mudar sua realidade e se esbaldar no copo meio cheio. O copo vazio, indesejado, transparece problemas como o burnout, esgotamento físico e mental advindo da atividade profissional, e adoecimentos psíquicos, como a depressão.
Segundo Illouz e Cabanas, a influência da felicidade no ambiente corporativo não se deu por acaso e é encontrada também nas gestões governamentais, com destaque para as adeptas do neoliberalismo.
É derivada do significativo impacto provocado pela psicologia positiva, apresentada no ano 2000 em um manifesto do psicólogo e então presidente da Associação Americana de Psicologia Martin Seligman com o propósito de difundir uma ciência focada nas emoções positivas e na autodeterminação como caminho para a felicidade.
A proposta, de acordo com os pesquisadores, foi acolhida não só por acadêmicos, pela imprensa, formadores de opinião e o grande público, como também por economistas e políticos que viram na felicidade a chave para mensurar o sucesso de uma sociedade.
Metodologias foram criadas para quantificar critérios subjetivos como bem-estar, equilíbrio e prazer, e índices de felicidade passaram a nortear políticas públicas em vários países, em detrimento de ações voltadas à distribuição de renda e à promoção de direitos.
Circo, em vez de pão
“Não há nada de errado em buscar a felicidade. É de fato um direito fundamental. Os indivíduos têm o direito de definir por si mesmos o que os faz se sentir bem”, argumenta Eva Illouz em entrevista à BBC News Brasil.
“Estudamos a psicologia positiva, que é uma distorção muito específica da ideia de felicidade, se tornou uma subdisciplina da economia e serve ao propósito de muitos países, democráticos e ditatoriais. Muitos governos estão tentando substituir uma redistribuição justa de recursos pela felicidade. Isso é algo que deve nos preocupar”, complementa Illouz, que é diretora da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, na França.
“Se você mensura a felicidade e declara que este é o objetivo da política, acaba considerando melhor ter países profundamente desiguais do que sociedades mais igualitárias, simplesmente porque as pessoas na Índia declararam que são mais felizes do que as pessoas na França.”
Na prática, explica a socióloga, a busca pela satisfação dos cidadãos substitui os princípios de liberdade e justiça.
“Se eu criasse uma sociedade de jogos e assim fizesse as pessoas felizes, esta seria uma sociedade melhor?”, questiona.
Em entrevista à BBC News Brasil, Illouz e Cabanas alertam que um dos problemas de apresentar a felicidade como o objetivo mais fundamental a ser perseguido na vida é negligenciar valores tão importantes quanto, como igualdade, solidariedade ou justiça.
“Ignora-se completamente o fato de que estes outros valores são necessários para ser feliz. Poucos fatores são tão determinantes para a felicidade quanto a desigualdade, por exemplo.”
“De fato, talvez nenhum outro fator sociológico esteja mais forte e claramente relacionado ao bem-estar e à saúde mental do que a desigualdade. Os dados sobre isso são sólidos e convincentes: as taxas de doença mental são inconfundivelmente mais altas em sociedades com maiores diferenças de renda”, explicam os pesquisadores.
Cada um por si
Não é de hoje que a felicidade é um desejo tão valioso. Mas seus parâmetros mudaram e passaram a orbitar em torno do “eu”, de forma que ser feliz passou a ser uma busca pessoal, associada à aquisição e ao desenvolvimento de três características psicológicas: a autogestão emocional, a autenticidade e o florescimento.
Para hospedar a felicidade dentro de si, há uma indústria à disposição, na qual são ofertados cursos, serviços terapêuticos e de coaches, treinamentos da força interior, literatura de autoajuda, palestras motivacionais, técnicas de meditação, aplicativos medidores de bem-estar e aconselhamentos.
Edgar Cabanas, que é professor e pesquisador na Universidade Camilo José Cela, em Madri, explica à BBC News Brasil que a noção de felicidade analisada no livro estabelece que a vida boa não seria uma questão social, cultural e política, mas uma questão de escolha individual, responsabilidade pessoal e fatores subjetivos como atitude e força de vontade.
Sob esta premissa, ao olharmos para nossa realidade, não surpreende que muitos considerem que as mais de 660 mil mortes por covid-19 no Brasil não devam ter impacto sobre a produtividade e a sociabilidade das pessoas. Basta buscarem uma saída dentro de si.
Segundo Cabanas, a promessa de que a felicidade depende de nós e apenas de nós é atraente, mas “bastante míope e problemática”.
“Por um lado, negligencia o fato de que não podemos alcançar uma vida boa na ausência de boas condições sociais e de vida: precariedade, desigualdade ou incerteza são determinantes para os indivíduos serem felizes, mas esta noção de felicidade nega esse fato.”
Por outro lado, complementa o pesquisador, as pessoas se tornam injustamente responsáveis por sua felicidade e infelicidade.
“Quando as coisas dão errado, isso acarreta um enorme fardo para os indivíduos que sofrem não apenas por seu infortúnio, mas também pelo sentimento de culpa que vem com a ideia de que eles, e só eles, são a causa de suas dores e problemas.”
O estigma da insatisfação
A pressão por ser feliz expõe ainda a confusão entre saúde e normalidade. Cabanas afirma que o discurso dominante da felicidade diz que apenas pessoas felizes são indivíduos bem ajustados e funcionais, enquanto não ser ou não se sentir feliz o suficiente é um sinal de desajuste pessoal e saúde (mental e física) ruim.
“Isso não está correto. Muitas pessoas são perfeitamente funcionais, saudáveis e não necessariamente afirmam ser felizes. Pelo contrário, muitas pessoas que afirmam ser felizes apresentam problemas de saúde mental e desajuste social.”
O psicólogo acrescenta que este segundo grupo de pessoas é especialmente problemático.
“Muitas pessoas se sentem pressionadas a se apresentarem mais felizes do que realmente são, mesmo em circunstâncias adversas. Uma das consequências prejudiciais da tirania da felicidade e do pensamento positivo é que somos obrigados a dizer que nos sentimos melhor do que realmente nos sentimos porque a infelicidade ou o mal-estar tornaram-se sinais de uma psique defeituosa.”
Desta forma, a infelicidade transformou-se em estigma social e, como tal, tende a ser vivenciada como algo vergonhoso para muitos.
“Não há nada de errado em não se sentir bem. É apenas normal. Como afirmamos no livro, o problema surge quando transformamos a felicidade no novo normal. Isso não é apenas irreal, mas também pode ser muito prejudicial.”
A socióloga Eva Illouz lembra que buscar a própria felicidade a todo custo tem o preço de descuidar de outros aspectos da existência humana:
“Estar envolvido em iniciativas coletivas, ser sensível aos defeitos e falhas do mundo, não ver a insatisfação como uma patologia.”
Viciados em bem-estar
Bem-estar e prazer, comumente associados às fórmulas de felicidade, são um convite irrecusável da nossa época. No entanto, estabelecem uma perigosa relação com os vícios, pondera a psiquiatra americana Anna Lembke, autora de Nação Dopamina: por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar, disponível recentemente no Brasil pela editora Vestígio.
No livro, a professora de psiquiatria e medicina da dependência da Universidade de Stanford, nos EUA, examina os comportamentos compulsivos aparentemente inofensivos que se desenvolvem sob o pretexto de se sentir bem. O bem-estar sem limites é bastante custoso, ela adverte.
A dopamina, neurotransmissor comumente associado às nossas atividades prazerosas, pode também protagonizar sofrimento, já que prazer e dor são processados em regiões sobrepostas do cérebro que funcionam como uma balança.
Em outras palavras, quanto maior o deleite, maior o grau de padecimento necessário para o equilíbrio cerebral.
Com plena oferta e demanda por felicidade, viver vai se tornando cada vez mais desafiador em termos de equilíbrio, especialmente quando olhamos nossas redes sociais ou as opções de entretenimento e consumo. Um mundo eufórico e promissor parece estar ao alcance de um clique.
“A tecnologia permitiu nos isolar de muitas experiências fisicamente dolorosas e aumentar nosso acesso ao reforço de drogas e comportamentos com o toque de um dedo. O resultado é que estamos a bombardear o caminho de recompensa do nosso cérebro com dopamina”, adverte a autora em entrevista à BBC News Brasil.
“Coisas boas em excesso acabam por ser algo ruim, e o resultado é que estamos reprogramando nossos cérebros para precisarmos de cada vez mais recompensas para sentir qualquer prazer, enquanto que o menorinconveniente se tornou uma espécie de tortura. Estamos mudando fisiologicamente os nossos cérebros para precisarmos de mais prazer e sermos capazes de tolerar menos dor.”
Tudo isso acontece em uma cultura que determina evitar a dor a qualquer custo, lembra Lembke. Medicamentos, drogas e compulsões aparecem como aliados nesta missão impossível, enquanto não observamos uma diminuição de casos de depressão e ansiedade.
“A ideia de que a vida deve ser uma grande festa e que devemos ser felizes o tempo todo é uma ilusão, mas que nossa cultura comprou. O resultado é que, quando não estamos felizes, pensamos que algo está errado conosco, que estamos doentes, azarados ou alguma combinação desse tipo. A verdade é que a vida é principalmente sobre estar descontente, e momentos de verdadeira felicidade são fugazes, muitas vezes espontâneos.”
Além de suas possibilidades de aproximação, as redes sociais também se tornaram uma maneira de ‘drogar’ a conexão humana, de modo que deslizar para a direita ou para a esquerda tem tudo a ver com dopamina e excitação, exemplifica Lembke.
“A ‘numerificação’ da experiência, na forma de rankings e curtidas, torna a experiência mais parecida com uma droga, e menos como um relacionamento. De qualquer forma, quanto mais pudermos tornar as redes sociais mais sobre conexões humanas autênticas e menos sobre ficar chapado, melhor”, completa.