Gil toma posse na ABL: “Poucas vezes na História os artistas foram tão hostilizados”

‘Poucas vezes na História os artistas foram tão hostilizados’, disse o artista

Cerimônia foi realizada no Petit Trianon, no centro do Rio de Janeiro
Cerimônia foi realizada no Petit Trianon, no centro do Rio de Janeiro – Foto: Mauro Pimentel/AFP
Foi inevitável, para o cantor e compositor Gilberto Gil, na noite de sua posse na Academia Brasileira de Letras (como o primeiro representante da música popular a ser eleito para a instituição) lembrar da capa de seu LP tropicalista de 1968, em que aparece envergando um fardão e usando pincenê. Um poema, escrito especialmente para o evento, foi recitado na noite de sexta-feira (8), na cerimônia na ABL, como uma tentativa de conciliação entre os dois momentos na vida do artista baiano de 79 anos de idade:”Eu mesmo, nos meus tempos de aventuras, / cheguei a envergar um garboso fardão, / vestido então como ironia dura, / a fantasia pura da ilusão! / juntava-me, naquele instante, aos muitos / que alfinetavam a Instituição / mal sabia eu quais os intuitos, / do destino astuto a interrogação. Um amigo lembrou-me outro dia / que as ironias sempre trazem seu revés / papéis trocados, eis aqui, vida vadia: / fardão custoso, bordado a ouro, vistoso, / me revestindo da cabeça aos pés”

No início do seu discurso, Gil ressaltou o fato de ter chegado, no limiar dos seus 80 anos, à Casa “onde já estiveram tantos escritores de minha admiração, alguns dos quais foram amigos queridos, na condição de primeiro representante da música popular do Brasil a ser eleito para esta instituição”.

“Entre tantas honrarias que a vida, generosamente, me proporcionou, essa tem para mim uma dimensão especial, não só porque aqui é a Casa de Machado de Assis, um escritor universal, e afrodescendente como eu, mas também porque a ABL, fundada em 20 de julho de 1897, representa, mesmo para quem a critica, a instância maior, que legitima e consagra de forma perene a atividade de um escritor ou criador de cultura em nosso país”, disse o compositor.

Contando com o prefeito do Rio Eduardo Paes na mesa, a cerimônia teve na plateia a presença de acadêmicos, de atrizes como (a também acadêmica) Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Malu Mader, Cissa Guimarães, Arlete Sales e Jessica Ellen, músicos como Jorge Benjor, Carlinhos Brown, Fernanda Abreu e também José Bonifácio de Oliveira Sobrinho e o casal Marcelo Freixo e Antônia Pellegrino. Vieram também suas filhas Preta, Maria, Bela e Nara, além da mulher, Flora.

Gil confessou que, até recentemente, não havia pensado em concorrer a uma cadeira da ABL, “mesmo sabendo que Tom Jobim chegara a se inscrever em 24 de setembro de 1993, retirando em seguida a candidatura em homenagem a seu amigo Antonio Callado, eleito em março de 1994”. Antes da posse, comentou que há dois meses passou a frequentar mais a Academia e que pretende “dar uma descontinuada” nas turnês para seguir frequentando. O momento político do país, em grande medida, o impeliu à disputa.

“A Academia Brasileira de Letras é a Casa da Palavra e da Memória Cultural do Brasil. E tem uma responsabilidade grande no sentido de fortalecer uma imagem intelectual do país que se imponha à maré do obscurantismo, da ignorância, e demagogia de feição antidemocrática. Poucas vezes na nossa história republicana o escritor, o artista, o produtor de cultura, foram tão hostilizados e depreciados como agora”. denunciou, para aplausos da plateia.

“Há uma guerra em prol da desrazão e do conflito ideológico nas redes sociais da internet, e a questão merece a atenção dos nossos educadores e homens públicos. A ABL tem muito a contribuir nesse debate civilizatório. E eu gostaria, aqui, de colaborar para o debate, em prol da cultura e da justiça”, completou.

Gilberto Gil se apresentou aos acadêmicos como alguém que “sempre procurou acompanhar o desenvolvimento das novas tecnologias no que elas possam contribuir para o bem de todos.” E expôs suas interrogações:

“O que será do Brasil em meio a esse mundo de pandemias e guerras? Que destino aguarda a Amazônia? O que os políticos estão fazendo para acabar com a fome e o analfabetismo? Quando conseguiremos alcançar a tão sonhada independência científica e tecnológica? Até quando o Brasil será o “país do futuro” de Stefan Zweig?”, perguntou-se ele, na incerteza de que algum dia vá ter as respostas.

“Procurei, junto com alguns brilhantes companheiros de geração, colaborar para que o Brasil fosse respeitado e amado mundo afora. Participei de movimentos culturais como a Tropicália, que continua dando frutos por aí. Tive grandes êxitos e alegrias nesta vida. Mas também fundas tristezas, a maior e a mais dolorosa a perda de meu filho Pedro Gil [falecido em 1989, num acidente automobilístico]. Mas não desanimo, porque é preciso resistir sempre”, continuou.

Em tempos “politicamente sombrios”, Gil disse apostar na esperança. E pediu a permissão para citar os versos de um dos seus maiores sucessos, “Luar”: “Se a noite inventa a escuridão / a luz inventa o luar / o olho da vida inventa a visão / doce clarão sobre o mar”.

“Contra a treva física e moral, que haja ao menos a chama de uma vela, até chegarmos a toda luz do luar”, disse o cantor, compositor e imortal da ABL.

Em seu discurso, Gil ainda saudou os acadêmicos, os amigos, a família (em especial a mulher, Flora) e os seus pais, a professora primária Claudina e o médico José Gil Moreira (“a eles devo o meu amor às letras e à música”). E fez longas menções aos ocupantes anteriores da Cadeira 20: o patrono Joaquim Manuel de Macedo (“um nome a merecer resgate, para além de sua eterna ‘Moreninha’”), o fundador Salvador de Mendonça, o “poeta, satiristra e boêmio” Emílio de Menezes, Humberto de Campos, Múcio Leão, Murilo de Melo Filho (seu antecessor imediato) e o general Aurélio de Lyra Tavares – nome que teve certo desconforto em dizer, por tratar-se “de um dos três integrantes da Junta Governativa Provisória  que comandou o Brasil de 31 de agosto a 30 de outubro de 1969” — a mesma que levou Gil e Caetano a serem presos e exilados.

“Mas, ao contrário, na constatação de como gira, às vezes com ironia, a roda da História, do ponto de vista acadêmico, os que conheceram e conviveram com o general Lyra Tavares nesta Casa reiteram o seu comportamento sempre afável e solidário, sua cultura literária e histórica e sua dedicação aos valores que balizam a história da ABL”, amenizou Gil.

Seguindo os protocolos, Fernanda Montenegro entregou a Gil o colar de acadêmico; Arnaldo Niskier entregou a espada; Cacá Diegues entregou o diploma e Merval declara Gil empossado na cadeira 20.

Depois do discurso, esperavam os convidados acarajé e abará de Carina, baiana radicada no Rio, e tapioca. Uma festa baiana montada por Flora, segundo Gil, a pedido dos próprios colegas acadêmicos.

No discurso em que recebeu o canto e compositor na ABL, o acadêmico Antonio Carlos Secchin disse que a Casa é não apenas de Machado de Assis, mas também de José do Patrocínio, Dom Silvério Gomes Pimenta, Pereira da Silva, João do Rio, Domício Proença Filho e “de tantos, enfim, que na história da Academia marcaram e marcam, de modo indelével, a benfazeja herança da diversidade e a força da afro-descendência para a cultura e as letras do país”.

“A perspectiva de Gil, ampla, ecumênica, dissolve hierarquias e congrega alteridades. Experimentador de formas, explorador de um largo espectro temático, o cancioneiro de Gilberto Gil assombra pela complexidade e pela amplitude, pautando-se, ao mesmo tempo, por um princípio de clareza e comunicabilidade. A cadeira 20 vai comportar muitos Gilbertos. Por isso, equivoca-se quem supõe que a ABL esteja simplesmente acolhendo Gilberto Gil; na verdade, ao acolhê-lo, ela se engrandece com a chegada do múltiplo Gilberto Mil”, disse Secchin.

Domício Proença Filho exaltou a novidade de Gilberto Gil na Academia:

“Sua presença na ABL evidencia dois princípios reveladores da visão aberta da Casa: a integração de tradição e contemporaneidade; a concretização de uma entre as múltiplas e necessárias ações afirmativas da representatividade do negro na cultura brasileira”, disse.

Para o presidente da ABL e imortal Merval Pereira, a Academia “recebe com alegria o grande poeta Gilberto Gil, que representa a cultura popular brasileira de maneira sublime, e a cultura afrobrasileira como parte dela”:

“Gilberto Gil, além do mais, foi ministro da Cultura, podendo dar contribuições importantes no trabalho que a ABL desenvolve na defesa da língua e da literatura nacional.  Sua presença na Casa de Machado de Assis expande, portanto, nossa abrangência cultural, nossa diversidade de representações”, afirmou.

Poeta e letrista de canções, o acadêmico Geraldo Carneiro festejou a eleição do colega:

“Gilberto Gil é um dos grandes exemplos de como a força da palavra se encantou na música brasileira e criou um repertório de imagens e ideias comuns a todos nós. A entrada de Gil na Academia é uma celebração da vida e da poesia traduzidas em música. Como já disse um poeta, é uma alegria pra sempre”, disse.

Já para a acadêmica Rosiska Darcy, a chegada de Gil a ABL “é de imensa importância, assim como foi a de Fernanda Montenegro, uma afirmação de que a ABL elege o que de melhor a Cultura Brasileira oferece, em sua formidável diversidade, nossa maior riqueza”:

“É uma eleição cheia de simbolismos, Gil é homem de muitos deuses, expressão estelar da Cultura Negra. A música popular acolhe grandes poetas de língua portuguesa, Gil é um poeta de excelência e, por isso, seu lugar é na Academia Brasileira de Letras”, afirmou.