Marcus André Melo
Folha
Gilberto Freyre enxergou traços da Rússia entre nós quando se referiu ao Brasil como “essa Rússia Americana”, em “Casa Grande & Senzala” (1933), e mesmo antes. O foco de sua análise são as relações de sadismo e gosto pelo mando resultantes da escravidão e que perpassavam a vida brasileira, da esfera sexual à política, irradiando-se “no gosto de mando violento ou perverso que explodia no senhor de engenho ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública”.
E acrescentava: “um gosto que se encontra abrutalhado em rude autoritarismo num Floriano Peixoto”. E concluia que o mandonismo tem sempre encontrado vítimas em quem exercer-se com “requintes sádicos, deixando até nostalgias logo transformadas em cultos cívicos, como o do Marechal de Ferro”.
AUTORITARISMO – Em relação à psicologia política, Gilberto Freyre argumentou que “o que o grosso do que se pode chamar ‘povo brasileiro’ ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático” (como não lembrar de Putin?).
A análise aqui é descritiva, não normativa; Freyre vaticinou o homem forte que viria a inflamar a imaginação política no país sob a ditadura do Estado Novo e sob a democracia populista.
Na “Rússia americana”, conclui “as expressões de mística revolucionária, de messianismo, de identificação do redentor com a massa a redimir pelo sacrifício de vida ou de liberdade pessoal” se vê “menos a vontade de reformar ou corrigir vícios de organização política que o puro gosto de ser vítima ou sacrificar-se”.
DUAS MONARQUIAS – Populismo, messianismo, vitimismo. Sim, não é à toa que a Rússia é o berço dos Narodniks (populistas), que inclusive deram origem à expressão populismo.
Rússia e Brasil eram monarquias com territórios continentais tendo em comum as chagas da escravidão e da servidão prolongadas. Mas o Brasil tinha liberdade de expressão e um monarca “orgulhoso de sua tolerância” em relação à oposição, como afirmou Joaquim Nabuco.
A divergência radical de trajetória acentuou-se com a Revolução de 1917, e o totalitarismo resultante. Enquanto isso, a República Velha foi um regime semicompetitivo.
ALTERNÂNCIAS DE PODER – Tivemos as ditaduras de Vargas e a Militar; mas, na República de 46, um regime multipartidário competitivo surgiu e superou crises. Desde 1988, o regime assistiu a três alternâncias de poder; na Rússia, não houve uma sequer alternância pacífica e competitiva. .
Os traços essenciais do populismo nunca nos abandonaram: narrativas contrapondo elites corrompidas e povo virtuoso; e líder como expressão direta deste último, sem intermediários como partidos ou sem estar limitados por instituições de controle ou separação de poderes.