ESSE MUNDO NÃO CAI. Por Paulo Gustavo

Por Paulo Gustavo – Escritor, poeta e membro da Academia Pernambucana de Letras

A internet, em mais um de seus estupendos flagrantes, nos mostrou, semana passada, a queda de um cenário na casa de um dos participantes de uma reunião de trabalho virtual. Uma biblioteca desabou por trás de um desembargador amazonense. O vexame teria sido menor se não fosse justamente por este detalhe: a biblioteca era falsa. Podemos dizer: uma biblioteca plana, puro fundo cenográfico, feito sob medida para ser uma paisagem intelectual. Nada de volumes, por assim dizer, de carne e osso, de miolos e capas. 

Pergunto-me que livros assim de mentirinha estariam ali naquelas falsas prateleiras. É de se imaginar que, sendo o seu ilustre possuidor um homem do Direito, um magistrado, devesse ter em suas pseudocoleções os mais augustos tomos de sua área: respeitáveis códigos, revistas jurídicas encadernadas, juristas clássicos, compêndios de acórdãos, quem sabe até alguma coisa que pudesse ler com satisfação. Mas não duvido que, entre tantos livros de escol, fôssemos encontrar um Tolstói, um Shakespeare (o das tragédias, sobretudo), um incontornável Machado de Assis, um adormecido Proust, enfim uma literaturazinha que tanto verniz traz a qualquer biblioteca, seja ela plana, planejada, caída ou orgulhosamente de pé. Infelizmente, nada podemos ver daquelas lombadas ilustres que ocultavam até então o seu amor à lei maior da gravidade.

Biblioteca caída, desabada, talvez um tanto revoltada contra o dono, embora não tenha caído por cima dele, mas para trás, numa inócua tentativa de fuga… Mas eis que o egrégio magistrado se levanta e, com tato e celeridade, soergue o fictício patrimônio. Ei-la, num breve gesto, de novo às suas costas, altiva e silenciosa como costumam ser as bibliotecas. Nunca os livros foram tão leves e tão infensos a desfolhamentos e amassos. Eis um tema para um filósofo sereno e desocupado: a insustentável leveza dos falsos livros. Imaginem que desastre teria sido se os livros e a estante fossem de verdade. Imaginem a profusão de traças e a multidão de ácaros, sem falar no perigo de um traumatismo craniano (ocasionado não pelos livros, sempre dóceis, mas pelas duras prateleiras onde os empoleiramos). Dessa forma, evitou-se uma tragédia no Judiciário nacional, já tão assoberbado de tragédias e outros gêneros assustadores.

Convenhamos, com esforçado “animus jocandi”, não ser de hoje a contribuição cenográfica dos livros — falsos e verdadeiros. Sempre ouvimos falar de pessoas que compravam livros por metro. Mas o caso do desembargador amazonense é, por assim dizer, um avanço: agora é todo um “décor”, todo um combo e um biombo; prateleiras e livros dignificando ambientes, discursos e argumentos, emoldurando a voz da justiça e de seus lídimos e devotados luminares. Enfim, tudo combinando, leis e livros, salvo melhor juízo.

Numa entrevista famosa, o semiólogo e escritor Umberto Eco nos disse com a convicção de um oráculo grego: “Não contem com o fim do livro!”. Mas o livro insiste em desaparecer, sobretudo onde ele deveria estar. É o caso das livrarias que, por sua vez, também desaparecem… As nossas livrarias, quando de pedra e cal, têm café, sorvete, salgadinhos, bolinhos, outros “inhos” e até… livros. Qualquer hora dessas, ao abrirmos um volume, veremos saltar uma pizza acompanhada de um chope. Nada mau, desde que não estrague o livro e seja uma promoção absolutamente gratuita.

Vivo estivesse, o escritor Jorge Luis Borges, ao lado de Umberto Eco, também não estaria em boa situação, pois não disse ele que sempre imaginou o paraíso como uma biblioteca? Mas que paraíso pode haver numa biblioteca falsa, de livros literalmente superficiais?!!! E Mallarmé, o que diria, ele que achava que “No fundo, o mundo é feito para acabar num belo livro”?  E o nosso Millôr Fernandes, que lacrou ao afirmar que “Livro não enguiça”?… Por último, adicionemos um pensamento do poeta Heinrich Heine, que gutemberguianamente sentencia: “De todos os mundos criados pelo Homem, o mundo do livro é o mais poderoso”. Pois é. Esse mundo não cai.