Uma tragédia humanitária vivida sob o nazismo, em um dos países atualmente com um dos melhores indicadores de desenvolvimento humano do mundo, tem desde então trazido lições ao mundo a respeito dos impactos da fome extrema sobre bebês que ainda nem tinham nascido.
Era o inverno de 1944 na Holanda, que na época estava parcialmente ocupada pela Alemanha nazista.
Durante meses, as tropas alemãs bloquearam o suprimento de comida para grandes partes do território holandês, deixando 4,5 milhões de pessoas em situação de fome extrema.
“As pessoas comiam os cachorros, os gatos e os ratos. Era simplesmente desesperador”, contou um sobrevivente à BBC em 2013. “Os padeiros não tinham trigo, então, faziam pães aguados, que grudavam na boca.”
Alguns estudos estimam que cada holandês dispunha de comida equivalente a 370 calorias por dia — lembrando que as normas de saúde vigentes hoje sugerem a ingestão diária de 2 mil calorias por dia para mulheres e 2,5 mil para homens.
Foi um dos mais graves episódios de fome ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, que deixou 20 mil mortos e só terminou com a derrota da Alemanha, em maio de 1945, e a libertação da Holanda.
É um desastre que permanece na memória coletiva dos holandeses até hoje, explica à BBC News Brasil a pesquisadora Tessa Roseboom, professora de Desenvolvimento e Saúde na Primeira Infância na Universidade de Amsterdã.
“A memória coletiva do povo holandês sobre a Segunda Guerra é dramática”, relata. “Claro que os números de sobreviventes estão diminuindo, mas todos conhecemos histórias de pessoas que tiveram de comer bulbos de tulipa, que tiveram que andar centenas de quilômetros para achar comida.”
Ao mesmo tempo, o fato de a fome extrema ter ocorrido apenas durante um breve intervalo de tempo (a escassez acabou quando o abastecimento de comida foi normalizado, e a Holanda caminhou para ser um país extremamente próspero) deu aos cientistas um cenário ideal para estudar o que a falta de nutrientes faz com o corpo de uma pessoa — em particular, uma pessoa ainda em formação, dentro do útero da mãe.
E as pesquisas sobre o “inverno da fome” (ou hongerwinter, no original) mostram que as consequências são sentidas até hoje por pessoas que estão na casa dos 70 e 80 anos, e provavelmente serão sentidas por seus descendentes.
Mais problemas de saúde física e mental
Roseboom e seus colegas coletaram, em arquivos históricos, registros médicos detalhados sobre mulheres que estavam grávidas durante o período de escassez e, desde então, estão analisando a saúde física e mental dos filhos dessas mulheres, hoje idosos.
Essas pessoas apresentam maior incidência de obesidade, de colesterol alto, de diabetes tipo 2 e de problemas cardiovasculares do que a população holandesa em geral, “riscos que contribuem para menos bem-estar físico e mental e mais risco de mortalidade nesse grupo”, aponta a pesquisadora.
Um motivo provável é que essas pessoas tiveram seus corpos “programados” desde o útero para sobreviver com muito pouca comida. Ao longo do tempo, isso se converteu em um problema de saúde.
“Encontramos diferenças claras em termos de estrutura e tamanho do corpo, e achamos que isso se deve à falta de ‘blocos de montar’ — ou seja, da má nutrição — de suas mães quando elas estavam construindo o corpo de seus bebês”, explica Roseboom.
Além disso, ela diz que exames de ressonância magnética feitos nessas pessoas indicam que seus cérebros são menores, o que pode explicar por que eles parecem ter um desempenho pior em tarefas cognitivas.
E de modo geral, o cérebro dessas pessoas parece “envelhecer mais rápido”, acrescenta a pesquisadora.
Fome no Brasil e no mundo
As consequências observadas na Holanda se referem a um período histórico único e extremo, mas servem de alerta quanto aos impactos que a falta de nutrientes tem na saúde de longo prazo das pessoas, em particular fetos e crianças — e de como isso pode prejudicar a força de trabalho futura de um país, explica Roseboom.
Isso vale inclusive para países como o Brasil, onde 19 milhões de pessoas estavam, no final de 2020, em situação de insegurança alimentar (quando o acesso e a disponibilidade de alimentos são escassos), segundo cálculos da Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
“Primeiro, o estresse da pandemia impacta crianças já no útero, e sabemos isso a partir de pandemias passadas. A gripe espanhola de 1918, por exemplo, deixou marcas duradouras nas crianças que ainda não haviam nascido. Sabemos que eles tiveram risco mais alto de doenças cardiovasculares e participação mais baixa no mercado de trabalho”, aponta Roseboom.
“A restrição ao acesso à comida no Brasil neste momento pode muito bem ter consequências negativas, principalmente para crianças no útero. Vimos isso na Fome Holandesa, mas também foram observados efeitos similares em outros momentos nos quais houve restrição de comida”, como em períodos graves de fome na China, na Irlanda ou no continente africano como um todo, diz ela.
“Então, como isso não teria um efeito similar nas crianças brasileiras?”
Diante desse cenário, Roseboom argumenta que, quando se protege a infância e se garante que grávidas, bebês e crianças recebam nutrição saudável, produz-se um benefício para toda a sociedade, que contará com adultos mais produtivos e com menos problemas de saúde. “É impressionante ver como os cérebros (de pessoas gestadas sob a fome) são menores, fazem menos conexões, têm profusão cerebral mais pobre para tarefas cognitivas. A escassez de comida não afeta só a saúde física futura, mas como essas crianças vão se sair na escola, como conseguirão contribuir para o mercado de trabalho.”
“Nesse sentido, há um importante efeito econômico a ser considerado. Se as crianças tiverem a pobreza incrustada em seus cérebros, quase literalmente, jamais conseguirão contribuir com seu (potencial) máximo. É um problema que a sociedade inteira vai enfrentar se uma geração ficar desprotegida. O legado é mais longo, com um preço mais alto a ser pago.”
De geração em geração
Outros pesquisadores que se debruçaram sobre os efeitos do “inverno da fome” holandês observaram impactos semelhantes aos de Roseboom nos filhos das mulheres grávidas naquela época, em particular as que estavam no início do período de gestação.
Estudos realizados por acadêmicos de universidades dos Estados Unidos e da Holanda, por exemplo, identificaram que a taxa de mortalidade de quem foi gestado durante a fome era 10% maior do que quem havia nascido antes ou depois daquele inverno.
Riscos maiores de sobrepeso, colesterol alto e esquizofrenia também foram identificados por esses pesquisadores, e uma teoria por trás disso é que a privação de nutrientes pode ter “silenciado” alguns genes que participam do processo de queima de gordura no corpo.
Roseboom também suspeita que haja impactos genéticos, os quais podem inclusive já terem sido passados adiante para os descendentes dos bebês do “inverno da fome”.
“A evidência não é tão forte quanto a que observamos nos bebês em si, mas de fato vemos indícios de que a geração seguinte também se sente menos saudável, é mais obesa e tem uma saúde pior”, explica.
Impacto em crianças
Embora os estudos do “inverno da fome” tenham focado principalmente nas mulheres grávidas e seus bebês, considerados o grupo mais vulnerável naquele período, Roseboom afirma que suas demais pesquisas indicam que crianças também têm sua saúde bastante prejudicadas por períodos de fome.
“Na fome holandesa, sabemos pelos registros que as crianças foram relativamente mais protegidas (do que adultos): as que tinham menos de um ano recebiam porções de comida de mais de 1 mil calorias por dia. E você pode perguntar: isso é suficiente? E será que comer (apenas) bulbos de tulipa e batatas seria bom para crianças pequenas? Duvido. Mas o governo tentou muito proteger as crianças o máximo possível”, relata. “Mas há outros estudos que investigam o impacto em crianças, e estive envolvida em alguns deles. Também vimos efeitos negativos na saúde.”
No Brasil, havia, em 2019, segundo levantamento da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança, ao menos 9,1 milhões de crianças de até 14 anos em situação domiciliar de extrema pobreza, o que provavelmente significa que estavam sob insegurança alimentar — um problema que se agravou com a pandemia, o desemprego e a inflação.
Um relatório da Associação de Psicologia dos EUA aponta que a insuficiência de comida está associada, em crianças, a mais dores de estômago e de cabeça e a mais resfriados. “E a fome severa antecipa doenças crônicas entre crianças em idade pré-escolar e escolar”, diz o texto.
Além disso, viver sob a insegurança alimentar pode causar estresse tóxico, que por sua vez “afeta o desenvolvimento cerebral, o aprendizado, o processamento de informações e os resultados acadêmicos das crianças”.
Ainda assim, é nos bebês no útero que os malefícios são piores, diz a pesquisadora holandesa: “É (durante a gravidez) que todos os órgãos estão sendo formados. Se eles forem construídos com blocos menores e mais pobres, não surpreende que haja consequências de longo prazo para a resistência aos estresses da vida cotidiana”.
Os efeitos disso podem ser mitigados ao longo da vida, mas são persistentes, ela agrega.
“O coração terá menos células musculares, os rins terão menos unidades de filtragem, o cérebro terá menos neurônios. (…) À medida que a idade avança, você fica mais suscetível a problemas. Claro que pode-se consertar um pouco disso — um bebê desnutrido pode receber muita comida saudável, atividades e estímulos e minimizar os efeitos, mas reverter completamente não é possível, porque você não consegue construir seu coração do zero outra vez.”