Título original: Suspeito que a civilização pressupõe a infelicidade como condição necessária.
O tema da redenção me encanta há muitos anos. Sou um descrente encantado com a tradição bíblica. Para almas apressadas, pode parecer uma contradição. Prefiro ver como uma espécie de pequena modéstia diante de tamanha beleza contida nas temáticas bíblicas.
Entre as várias histórias que me encantam está a de Lázaro. Não propriamente como a ideia do milagre de trazer alguém da morte, o que tendo a duvidar como fato, mas, sim, como metáfora da maravilhosa experiência que é, em meio à vida, você sentir-se vivo depois de muito tempo em que se sentia morto. Aliás, parte dessa ressurreição é tomar consciência dessa condição de morto em que se encontrava. Esta é a dor de Lázaro. Fosse inventada uma máquina para medir a sensação de estar morto em meio à vida, ela seria um blockbuster das tecnologias da informação.
Suspeito mesmo que a civilização pressupõe uma razoável dose de infelicidade como condição necessária. O maravilhoso livro de Freud “O Mal-Estar na Civilização” (uma das peças literárias necessárias para se entender o século 20) trata dessa condição de mal-estar como “resto” e condição do “processo civilizador”, nos termos do sociólogo Norbert Elias. Acomodar os anseios numa fina equação que enlaça afetos num sistema de obrigações sociais garante a continuidade da espécie. Penso mesmo que este trabalho tenha ocupado muitos milênios de nossos grandiosos ancestrais no Alto Paleolítico. Fosse eu ter uma religião hoje, seria o culto de nossos patriarcas paleolíticos.
Assim sendo, a civilização implica uma certa “dose de morte” em meio à vida. Lázaro estava morto e voltou à vida. Como podemos estar mortos em meio à vida? É possível termos uma experiência de Lázaro na vida?
Uma das formas mais comuns de morte é pensar que não há mais horizonte a não ser o cotidiano instituído: a mesma casa, o mesmo trabalho, a mesma padaria, os mesmos rostos, as mesmas lágrimas, o mesmo envelhecimento, o mesmo corpo no sexo. Um dos segredos da juventude é, exatamente, a possibilidade de ter um futuro desconhecido a ser explorado. Portanto, a ideia de que tudo que havia para ser conhecido em sua vida já o foi é, seguramente, uma forma de morte em vida. O amadurecimento, muitas vezes, implica uma certa dose de descrença na possibilidade de ressurreição em vida. Como amadurecer sem morrer?
Uma das razões para a morte em vida é a dureza da sobrevivência material. Nesse campo, a vida não tolera “iniciantes”. Qualquer erro e ela o castigará sem pena, transformando você num “loser” cheio de ressentimento e inveja daqueles que tiveram mais sorte ou, simplesmente, daqueles que nasceram com mais talento do que o seu pequeno quinhão de pobreza de espírito. E a vida profissional, no mundo contemporâneo, carrega muito mais significado do que “mero” ganho material, uma vez que passamos a maior parte do tempo envolvidos com ela. A vida profissional é, quase sempre, para a maioria de nós, uma certa dose de morte em vida.
Outra dose de morte em vida é o desencanto com o amor. A ideia de que o amor é para iniciantes ou desavisados com certeza nos garante uma vida longa sem sobressaltos. Infelizes são aqueles que caem vítima dessa doença que assola seus corações com uma tristeza infinita, instaurando o reino de uma inapetência para o cotidiano sem amor e afogado em demandas. Tranquilos são aqueles que se mantêm firmes em seu trajeto rumo ao envelhecimento sustentável.
Morrer em vida é, seguramente, se afogar em rancor, inveja, covardia. Afetos esses que, facilmente, se constituem em razões para conter o impulso de Lázaro em direção ao abandono do repouso na morte. Fiódor Dostoiévski (século 19) via em Lázaro morto a figura do homem assolado pelo medo da vida, assolado pela medo de correr o risco de ser perdoado por suas misérias porque, para ressuscitar, há que reconhecer-se morto primeiro. Só aquele que se reconhece morto poderá ver a imagem de Lázaro refletida em seu espelho. Esse rosto marcado pela dor da morte e pelas dores de parto que a ressurreição causará em sua vida.
Fonte: Folha de S.Paulo