A solidão tem muito com a vida e muito com a morte. Os mortos estão sós e são abandonados. Devem estar dormindo profundamente, como disse Manuel Bandeira. Por algum tempo eles detêm toda a nossa atenção, mas são em seguida abandonados. E esquecidos.
São entregues, sob o brilho das nossas lágrimas, a si mesmos e ao cosmos cuja totalidade não temos condições de abranger. Ao nos aproximarmos deles desmentimos radicalmente a boutade segundo a qual “de perto ninguém é normal”, porque eles não são mais ninguém e são agora de todos. Viram memórias, tornam-se lembranças e saudade. Saudades cheias de luz. Uma luz fugidia e opaca. Todos os segundos e dias de suas vidas são especiais, como disse o Thornton Wilder de “Nossa cidade”. Sua normalidade impressiona pelo silêncio e pela mais completa perfeição. O sono profundo é um pedaço do seu mistério.
Aliás, não há condenação mais ambígua do que a morte, exceto o exílio (ou a morte social), que, como revelou o magnífico historiador Fustel de Coulanges, era pior do que a morte entre os antigos romanos. E talvez seja assim entre nós, igualmente romanos quando damos mais importância às relações do que às pessoas, e não o contrário.
Entre os fatos maiores da morte e, para além dela, do morto amado que leva um pedaço do nosso coração senão toda a nossa alma ou uma de nossas pernas, jaz um mistério: para onde foi aquela vitalidade que tem como centro a necessidade de falar, trocar, cantar, escrever, construir e comunicar? De dizer como foi, como acontece nas grandes aventuras, experiências e viagens? Como é horrível para nós, vivos e predestinados a ser, um dia, esse morto, o mutismo inviolável dessa experiência que transforma a pessoa em mais uma estrela.
Espantoso como a morte — a mais importante experiência humana — seja, por isso mesmo, a única que jamais pode ser socialmente compartilhada. Dai a sua tremenda negação em toda as culturas e sociedades, em todas as crenças e ideologias.
“Força”, dizem os amigos nos olhando de esguelha e já pedindo licença para sair de perto. “Foi desta para melhor”, dizem outros consolando e negando veementemente o fato de que estamos todos condenados a algo pior do que o inferno, pois sofremos sem saber por que. Temos uma descabida consciência das ferramentas do sofrimento — rejeição, injustiça, ódio, descaso, inveja, esquecimento, para não falar das mais variadas formas de doença, agressão e acidentes em suas mais temíveis combinações —, mas não nos é dado conhecer os fins.
As causas e os motivos que levaram de nossa humilde esfera de vida um ente querido que, afinal de contas, importava mais para nós do que para todos os outros. Essa pessoa que tinha mais valor do que todas as barras de ouro e era mais amada do que todos os poderosos somados juntos. Assaltados, como a bíblica caravana, por ladrões infames e jamais detidos como o mal de Parkinson, o de Alzheimer e outras enfermidades cujo nome grandioso é sinal de sofrimentos inenarráveis, nos deparamos com a inconsistência entre o poder da doença e a fragilidade do doente tão tímido, tão pequenino, tão sereno, tão celestial na sua banal, frágil e corajosa inocência humana e o pomposo e estranho nome do funesto atacante. Espantoso descobrir alguém que compartilha de nossa vida, tendo a sua vida afligida por essas doenças impronunciáveis.
A solidão tem um sintoma trivial. Você é testemunho do seu próprio choro e não deseja (porque não precisa) que ninguém lhe veja chorando. O choro do amor é para o outro — quem quer que seja esse outro. O choro da solidão é para dentro e para esse outro que vive em você. É a prova de que somos muitos e que o tão desdenhado corpo é quem tem o duro papel de juntar em si todos esses atores. Temos muitos demônios e anjos interiores, mas um só palco e um só cenário dentro do qual eles podem se manifestar. Na pior situação, o corpo deve surgir uniformizado. Com as emoções mais dispares devidamente orquestradas e reveladas (ou não) por um corpo que é instrumento, ator e palco de tudo que passamos. A alma em frangalhos, o corpo sereno. Ajoelhado, como manda o figurino cristão. Ou o corpo em frangalhos e a alma serena no seu perpetuo dialogo com todos os seus demônios.
Outro dado estranho da solidão é não se sentir sozinho. Parece paradoxal, mas não é. Um torcedor do Fluminense no meio da torcida do Flamengo é a pessoa mais solitária do universo. Se o diálogo que você tem com os seus outros for positivo; se você fala com todas essas estranhas criaturas que estão dentro de você, inclusive e sobretudo com os seus mortos e doentes, a solidão lhe trás uma estranha paz.
A paz de Deus é a melhor metáfora para esse sentimento que chega com a vida na sua plenitude. Numa conversa franca com você mesmo como bandido, como covarde, como ignorante, como invejoso, como sovina, como boquirroto, e como renegado. Você apara suas arestas, acerta suas contas e entra em contato com aquela outra letra que segue o “A” (do amor) e o “B” (da bênção). Refiro-me ao “C” que escreve coração e compaixão. Porque sem compaixão, amigos, não há serenidade nem só nem acompanhado. Amém.