Interpretar as coisas, pensá-las, é uma espécie de doença dos intelectuais. Doença ou vício – como quis alguém – que se transforma em hábito, minando-lhes o modo de ser e roendo-lhes a capacidade primária de considerar as coisas com seus aspectos mais simples, elementares. O sr. Astrojildo Pereira, que reuniu em livro recente alguns de seus ensaios (1), mantém um equilíbrio saudável entre esses dois extremos: revela a capacidade por excelência do intelectual – aquela faculdade de pensar as coisas, de filtrar o mundo exterior por processos racionais – e ao mesmo tempo fica-se no terra-a-terra, gozando a impressão que todos sentimos ao pisar o “chão batido e liso”.
Essa não é uma constatação gratuita. Quase todos os ensaios revelam esse lado atraente do sr. Astrojildo Pereira, dando-lhes uma unidade de forma e de intenção que às vezes o denominador comum das ideias contraria parcialmente. Está claro que a diversidade do assunto facilita bastante um resvale desses – de o livro não ter unidade absoluta de pensamento; ou melhor, é possível encontrar-se pequenas variações de tons, de um ensaio para outro, consequência também de uma diferença de tempo. Há trabalhos como “Sociologia ou Apologética”, critica ao sr. Oliveira Viana, escrito em 1929, o qual mostra explicitamente um ponto de vista muito simpático que só muito ligeiramente e até nem implicitamente aparece em outros bons ensaios posteriores, como “Machado de Assiz, Romancista do segundo reinado” de 1939: “Romancistas da Cidade: Manuel Antonio, Macedo e Lima Barreto”, de 1941: “Rui Barbosa e a Escravidão”, “Posição e Tarefas da Inteligência”, de 1944 etc. Tôdas as “interpretações” têm, todavia, um ar de parentesco muito mais importante para o leitor: são uma fonte de sugestões, ativando o debate de alguns problemas sérios.
Nos limites de um artigo não se poderia tentar a empresa que o autor só resolveu em 301 páginas; por isso, limitar-me-ei a uma espécie de consideração a propósito do último ensaio, a que me referi acima: “Posição e Tarefas da Inteligência”. Nêle o problema da participação do intelectual, na vida social do povo brasileiro é colocado concretamente. Em termos gerais, o sr. Astrojildo Pereira discrimina os “abstensionistas” e os “participacionistas” – concluindo pela participação de todos, pois a própria abstenção pode significar “participação passiva ou por omissão”. Ambas as atitudes funcionariam como dois lados de uma moeda – cara e coroa – mas a moeda seria sempre a mesma: tal como a participação. O isolacionismo da inteligência, a “arte pela arte”, porém, é condenada pelo sr. Astrojildo Pereira, que considera o desempenho pelos intelectuais de sua parte específica, no campo propriamente intelectual da democratização da cultura, como o meio através do qual poderão os escritores brasileiros chegar aos problemas de natureza política, social e econômica. A atitude do sr. Astrojildo Pereira é ampla e plástica e não se pode exigir de nenhum intelectual uma compreensão mais profunda e ativa de suas funções. Os problemas de cultura apresentam-se como pontos de partida e como meios para se atingir certos fins concretos – maior participação das massas na cultura, etc. – e enriquecimento das esferas de preocupação dos escritores. O sr. Astrojildo Pereira é sobretudo hábil na colocação dêsses problemas. Sempre mostra que a participação do intelectual deve ser específica – sem eliminar outras formas de participação – mas ser específica, ficar no campo de suas atribuições culturais como escritor.
Assim, a campanha pela democratização da cultura deve começar pela liquidação do analfabetismo, e a ela os escritores precisam se dedicar de preferência: essa campanha pela liquidação do analfabetismo não é a única, porém é a principal, etc. Um leitor mal intencionado diria que o sr. Astrojildo Pereira gosta de tirar castanhas do fogo sem queimar as mãos, substituindo o abstencionismo da “arte pura” pela semi-participação do intelectual que teria sua atenção desviada para um campo de ação muito limitado. Contudo, a leitura do livro mostra no autor uma honestidade – não só intelectual – que o situa fora dêsse plano de cogitações e num lugar à parte entre os nossos escritores. Provàvelmente, o sr. Astrojildo Pereira, que não desconhece os outros aspectos da questão, dá maior importância êsse papel ativo e restrito dos intelectuais. Por motivos de preferências pessoais, por causa das condições históricas e culturais do Brasil e do mundo e ainda devido à situação mesmo da “inteligência” brasileira.
Em todo caso, parece-me que não devemos afastar os intelectuais assim, por qualquer causa, por mais “nítida” que ela seja. A campanha contra o analfabetismo é um dos elos de uma grande corrente; um dos aspectos de uma imensa tarefa. A contribuição dos intelectuais não pode e não deve ser de forma alguma específica – caso contrário estaremos numa modalidade nova de traição da inteligência: a de participação intencionalmente restrita, mínima. Os intelectuais compreendendo a impossibilidade do abstencionismo, procurando limitar o quanto possível suas atividades e sua participação. É uma forma de fugir à luta, aceitando-a; é também um meio de a “inteligência” conservar-se a serviço das classes dominantes, calcando suas mãos na balança dos dominadores e oprimidos. Jôgo duplo, amoral e perigoso, que poderia culminar no esmagamento da “inteligência” novamente.
Não. Parece-me que os intelectuais brasileiros não se devem iludir muito com as especificidades de suas funções. Sem trair a causa da “cultura” e sem deixar de fazer sua grande e histórica campanha contra o analfabetismo, em favor do povo – se é que de fato se preocupam com o povo brasileiro – é preciso que caiam de rijo? sôbre o corpo da questão. Quem pensa os fatos não pode fazer uma separação assim brutal nas atividades da “inteligência”, uma limitação tão violenta nas tarefas dos intelectuais e acreditar na eficiência de uma ruptura dêsse gênero exatamente no momento em que é necessário colocar as fôrças do pensamento e de ação no campo aberto da luta contra as fôrças da reação, do aproveitamento e da opressão. É inconcebível, mesmo, que os intelectuais cheguem a fazer isso; e seria uma enormidade se o fizerem, justificando-se com a causa da cultura e a causa do povo. A causa da cultura e a causa do povo sob certos aspectos são uma só. Não é possível dissociar uma da outra. Ou, mais precisamente, a causa do povo implica a causa da cultura.
Os intelectuais têm que considerar isto, se quiserem evitar a definição errada de posições. E se querem de fato defender a causa do povo, é lógico que não poderão dar uma importância desequilibradora à causa da cultura; situá-la, isto sim, no conjunto das outras causas e reivindicações do povo. Só assim conseguirão algo sólido para o povo e para a causa da cultura. De nenhuma forma é conveniente, pois, a atribuição de uma tarefa exclusiva ou preponderante à inteligência brasileira, em nosso momento histórico. Ninguém desconhece a gravidade da situação educacional do povo brasileiro e ninguém ignora as consequências que um melhoramento sólido traria a todos nós. Ninguém pode desdenhar o alcance econômico, social e político do elemento do nível educacional de nossas populações do campo e da cidade e o significado de sua participação maior na “cultura”. Entretanto, êsse admirável objetivo será alcançado com uma condição: que se atue sôbre os vários fatôres e condições do atual estado de fato. Aí as tarefas da “inteligência” são múltiplas. Ela deve começar por assumir várias posições de luta e de ação – pois que a definição da “posição” dos intelectuais só vale à medida que ela indica o preenchimento efetivo das diversas posições e a realização das tarefas correspondentes – e teríamos, para a “inteligência” brasileira, uma posição econômica, uma política, outra social etc., tôdas intimamente relacionadas e interdependentes. O intelectual não deve deixar as massas abandonadas às manobras que aqui e no estrangeiro estão se fazendo, visando desviar a atenção do povo do aproveitamento da guerra e do próprio massacre de seus interêsses e reivindicações, facilitado às vêzes por certos escritores. Os intelectuais não podem deixar de discutir concretamente as condições de vida do povo brasileiro, se quiserem conseguir qualquer coisa prática. A situação de nossas populações das zonas rurais e urbanas do trabalhador do campo e da cidade, seu nível de vida e seus recursos econômicos, comparando-o os nossos escritores com o nível de vida e recursos econômicos dos que aqui passam por privilegiados: verificarão que o “cultural lag”, a decalagem cultural, tem causas sociais econômicas, demográficas, políticas etc., precisas. É necessário atuar sôbre as causas quando se pretende eliminar ou agir sôbre os efeitos. A mesma coisa pode-se falar de outros problemas característicos de nosso povo. Isso tudo quer dizer como também reconhece o sr. Astrojildo Pereira, que a questão tem três lados: a democratização da cultura, que é o coroamento, o fim e o resultado; a “democratização política” e a “democracia econômica”. O escritor nunca chegará à “democracia cultural” diretamente saltando seus princípios políticos e suas bases econômicas. O salto seria além de perigoso, inócuo. É indispensável que a “inteligência” brasileira compreendendo isso, não se negue a realizar suas tarefas em todos os três setores, integralmente, como o mundo moderno necessita. E não ficar imobilizada pelo fantasma do mêdo e do comodismo comprometida por uma pseudo-campanha, unilateral e por isso condenada de início.
Publicado na Folha da Manhã, quinta-feira, 1º de março de 1945.