Filme é como um sucessor espiritual de ‘Árido Movie’, longa do diretor de 2004
“O Árido pertence a um momento marcante de minha vida, é um filme pelo qual tenho muito carinho. Caetano (Veloso) disse que é um filme com muitas portas, e que ele não sabia se queria abrir todas. Eu concordo, não é um filme que eu quisesse revisitar, mas aí ocorreu uma coisa curiosa. Há uns dez anos, fui com amigos a um festival na cidade de Triunfo, no interior de Pernambuco. Fomos de carro e, pela primeira vez, cruzei com as obras da transposição do Rio São Francisco. Fiquei fascinado e foi a partir dali que os personagens do Árido começaram a me assombrar.”
A questão da água – do árido para o Acqua. Lírio brinca dizendo que é um filme kardecista. “Muitos personagens do Árido voltam, interpretados por outros atores.” No final do filme, Giulia Gam, a Soledad, está grávida e aquele filho agora é da Alessandra (Negrini). Como sabia que não ia ter a Giulia, Soledad virou a Duda, que agora vive separada do Guilherme Weber.” O novo filme abre com uma discussão entre ambos por telefone. O Homem do Tempo/Weber cobra mais atenção da ex-mulher para o filho. Duda está distante, na Amazônia, fazendo um filme de índios.
O Homem do Tempo morre, o filho é forçado a conviver com a mãe. Caem na estrada – segundo o garoto, o pai queria ser enterrado em Rocha, mas a cidade foi soterrada pelas águas e existe agora Nova Rocha. Mais que uma sequência de Árido Movie, Acqua talvez seja um reboot. Weber volta ao Nordeste para o enterro do pai, no filme anterior. Cícero – seu filho – agora viaja às origens para também enterrar o pai. “Por mais que ele interagisse, na estrada e em casa, a odisseia de Jonas/Homem do Tempo era solitária, individual. Agora mãe e filho vão viver uma experiência transformadora para ambos. Cícero chega a acusar a mãe de preferir ‘seus’ índios a ele. A viagem proporciona uma espécie de (re)descoberta do Brasil, e do amor entre ambos.
Momento ímpar é quando o carro corre paralelo a um cânion, e a câmera de Gustavo Hadba – o diretor de fotografia que substitui Murilo Salles, do primeiro filme – se desloca para o interior do gigantesco canal. “A água era mínima, agora tudo aquilo está inundado, como a cidade. Só sobrou a estrutura da igreja.” Embora o gatilho tenha sido aquela viagem a Triunfo, Acqua só começou a tomar forma anos depois, quando Lírio viajou ao sertão para escrever o novo filme com os amigos Marcelo Gomes e Paulo Caldas. “Numa encruzilhada, tivemos um choque. Naquela desolação imensa havia um painel anunciando a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência. Para nós, ele era um candidato folclórico, como havia sido o Enéas. Quando estreamos no Festival do Rio, já vivíamos a tragédia desse Brasil sob Bolsonaro.”
Para expressar essa nova era, surgiu o personagem do prefeito, interpretado por Augusto Madeira. Intimidador, ele quer transformar o enterro do Homem do Tempo num evento partidário. Tenta cooptar o sobrinho. Alessandra volta à estrada, em busca da terra dos índios, onde o próprio Cícero terá sua revelação. “As coisas foram se ajustando. Eu queria a Alessandra e dessa vez consegui. Para o Cícero, terminei usando o Antônio Haddad, que pertence a uma família de artistas de São Paulo, meus amigos. Eu o conhecia desde pequeno, e ele, aos 7 anos, já me enquadrava – ‘Tio Lírio, quando vai ter um papel para mim?’ Vê-lo atuar com a Alessandra foi um grande prazer.”
Ela conta: “Surgiu no meio do caminho uma novela, mas dessa vez eu disse que tinha o filme e queria fazer. Foi uma questão de ajustamento de datas. Quanto ao Antônio (Haddad), tenho dois filhos e a Betina é mais ou menos da idade do Cícero. Usei muito da minha experiência como mãe para o papel”. O cinéfilo de carteirinha há de lembrar da frase final de Baile Perfumado: “Os inquietos hão de mudar o mundo”. Essa inquietude faz parte do temperamento do diretor. Os amigos tiram sarro e dizem que um filme de Lírio é muitas vezes, senão sempre, um delírio.
Árido era mais irregular, a inquietude tinha de ser gritada. Acqua investe mais no afeto. Música (de Antônio Pinto, que também é um dos produtores), fotografia (do já citado Gustavo Hadba) e montagem (de Vânia Debbs, que tem sido parceira de Lírio) harmonizam-se de tal maneira que o filme flui como um rio na vida dos personagens (e dos espectadores). O próprio título, Acqua, em vez de Árido, já significa muito. “Ao colocar na tela uma mãe e um filho em busca da reconstrução do afeto num mundo caótico, é claro que o filme tinha de ter essa pegada.”
O afeto transborda. Assim como tinha José Celso Martinez Correia em Árido Movie, Lírio tem agora Edgar Navarro no Acqua. Transgressores geniais, eles o inspiram como artistas e pessoas humanas. “E tem o Ruy Guerra em Sangue Azul, que filmei em Noronha”, ele lembra. O afeto, como a água, está presente em todo o filme, desde a morte do pai, naquele chuveiro.
De novo é um filme com muitas camadas – o amor de mãe e filho, o coronelismo, os índios, o conflito entre o arcaico e o moderno. “Pra gente, Paulo, Marcelo e eu, escrever em loco, no sertão, foi decisivo para que todas essas camadas entrassem organicamente, de forma natural, na nossa história.”