* Por Cauana Mestre *
Em 1907, no trabalho O delírio e os sonhos na Gradiva de Jensen, Freud afirma que os escritores são aliados valiosos e estão à frente dos homens cotidianos, pois recorrem a fontes não acessíveis à ciência. Logo depois, em 1909, ao escrever o ensaio Das Unheimeliche, investiga o conto O Homem da Areia, de E.T.A. Hoffman, e rompe com a ideia de que a psicanálise se apropria da literatura através de uma relação meramente interpretativa, convocada a encontrar, no texto, os traços de seu autor. Pelo contrário. O que fica evidente é que o texto, para a psicanálise, serve como fonte de escavação para ligar enigmas literários aos enigmas do inconsciente. É por essa via que Lacan, por sua vez, aproxima-se da literatura. Ao escrever Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, ele adverte os analistas de que estes não devem fazer-se de psicólogos onde o artista lhes desbrava o caminho.
A relação entre psicanálise e literatura é, hoje, tão fecunda quanto sempre foi, desde que não abrace o perigo de reduzir uma à ilustração da outra. O analista, diz Roland Chemama, deve tomar o texto à letra, assim como toma o sujeito pela palavra. São campos distintos, é verdade, mas estão entrelaçados pelas propriedades da experiência de linguagem, por isso a psicanálise que lê o texto literário desvia-se da busca pelo sentido e debruça-se no próprio funcionamento da escrita. Essa engrenagem cristalizada no real da palavra nos leva aos labirintos da escrita feminina. Um exemplo disso é o último livro de Renata Belmonte, seu primeiro romance, Mundos de uma noite só.
“Pergunto para a ginecologista: ‘há algum remédio que me impeça de me tornar uma mulher?’ Sim, porque é com pavor que descubro meu destino. Marcam-no com sangue: mulher. Sempre soube pouco sobre o que era ser homem. Mas todas as mulheres que conheço têm vidas difíceis. Mesmo assim, sou obrigada a me despedir. Mato para sempre meu irmão. E morre também uma parte importante de mim”.
Toda a narrativa me lembrou a vertigem de um processo analítico, marcado pelo tempo lógico em que não se confundem apenas passado, presente e futuro, mas também os espaços entre um sujeito e outro. Tempos e espaços que se desmontam em perguntas cheias de angústia, em mistérios de existência que não se respondem a não ser pela coragem de construir e inventar respostas. Li como se fosse atravessada por um atordoamento linguístico, chocando-me com esse esforço da letra feminina: o esforço de escrever o indizível. Enquanto psicanalista, valorizo a literatura que preserva o enigma da subjetividade humana, afastando-se da lógica produtivista que oferece verdades absolutas em cápsulas de reducionismo. Em Mundos de uma noite só, o enigma é levado à expressão máxima e as coisas que não se respondem são as que mais revelam.
Capítulo a capítulo, a valsa para o esquecimento me deu as mãos e conduziu-me por uma viagem no universo feminino, jornada que me convocou a imaginar uma linhagem inteira de mulheres com rostos, corpos e roupas definidas. Da beleza de uma à loucura da outra – e tudo que há pelo caminho.
Freud construiu a psicanálise a partir da pergunta feminina, quando passou a ouvir as histéricas do final do século XIX. Em 1933, na célebre conferência Feminilidade, formulou uma questão essencial: como se forma uma mulher? Como se constrói um sujeito feminino a partir da criança dotada de disposição bissexual? No romance de Renata, a formação subjetiva da personagem não procura apenas responder à pergunta: o que é uma mulher? Mas, antes disso, responder à pergunta anterior: eu, com este corpo um tanto estranho ao qual pertenço, sou um homem ou uma mulher? O que significa habitar um corpo de mulher quando, como nos ensina Lacan, não se tem terreno garantido na feminilidade? Se não existe uma palavra que funde o sujeito feminino, se não há significante para solidificar o chão de onde uma mulher se levanta, o vazio é sempre o ponto de partida. É com esse vazio que a escrita feminina trabalha, delimitando, dentro dele, o lugar de onde qualquer coisa pode emergir na invenção de uma identidade. O que a trajetória da personagem nos ensina é que ser mulher, afinal, é coisa que se inventa.
Bons livros nos convidam a escrever, e eu escrevi muitas hipóteses para as mulheres de Mundos de uma noite só, seus passados e seus destinos. Escrevi uma porção de desfechos, intrigada com aquilo que me escapava da narrativa, assim como inscrevemos, na vida, pedaços daquilo que somos, partes sempre pequenas de coisas idealizadas e grandes demais. Sou sempre meio, jamais fim, nos diz a personagem. Evoquei minha singular condição feminina, as partículas que concedi de mim mesma para os outros e aquelas das quais nunca me desfiz; pensei na rede de mulheres das quais nascemos e das quais tanto carregamos, mesmo sem saber. Fiquei, também, atravessada pela marca da diferença sexual, presente no livro de forma tão potente; esse enigma que funda, para sempre, um imenso mal entendido em todo sujeito, o começo de uma assimetria infinita entre corpo e gozo.
Mas, sobretudo, fui tocada pela liberdade que Renata Belmonte agarra ao escrever, como se depositasse, no fluxo das letras, a evanescência do mistério feminino – e sua liberdade convocou a minha. Fiquei sensibilizada por esse vazio que a letra não preenche, mas dá margem, contorna e sustenta. É um livro que fura os sentidos, um trabalho subjetivo que está decidido a não recuar diante do descampado território feminino e, se não chega à palavra exata – impossível de ser pronunciada – consegue bordejá-la e fazê-la ressoar. Mergulhei nas palavras do Mundos, apropriei-me delas e, se existe hipnose, para mim, é isso.
Mundo de uma noite só, de Renata Belmonte (Faria e Silva Editora, 200 págs.)
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Cauana Mestre é psicanalista, graduada em Psicologia pela PUC-PR, especialista em Psicologia Clínica pela mesma instituição e mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.
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Ilustra a resenha: Objeto gráfico, de Mira Shendel (1967)