Thayz Guimarães
O Globo
Em seu discurso da vitória, em 2008, Barack Obama recorreu à tradição do excepcionalismo americano para enviar uma mensagem ao mundo, reafirmando que “o farol dos EUA” ainda brilhava “com a mesma intensidade” e que “a verdadeira força de nossa nação não emana da capacidade de nossas armas ou do tamanho de nossa riqueza, mas do poder persistente de nossos ideais: democracia, liberdade, oportunidade e inflexível esperança.”
Essa visão de uma democracia americana sólida, porém, parece ter caído por terra na última quarta-feira, quando apoiadores de Donald Trump invadiram o Capitólio, a sede do Congresso, insuflados pelo próprio presidente, numa última tentativa de impedir a certificação da vitória eleitoral do democrata Joe Biden, afirma o cientista político Ian Bremmer, presidente do Grupo Eurasia, a consultoria de riscos geopolíticos.
Em entrevista ao GLOBO, Bremmer afirma que será preciso bem mais que um presidente para consertar a imagem dos EUA, uma vez que “o mundo não sabe mais se a liderança americana e seu modelo de democracia são sustentáveis”. Por outro lado, a falta de outra potência que possa fornecer liderança global, ele diz, torna o ambiente geopolítico ainda mais desafiador.
No relatório de riscos de 2021 publicado pela sua empresa, o número um é a fragilidade do governo Biden, considerado ilegítimo por metade do país e dos legisladores. Esse risco ficou menor depois da invasão do Capitólio por apoiadores de Trump?
Pelo contrário, o risco agora é obviamente maior. Um amigo meu, que é senador democrata, me escreveu na manhã de quinta-feira e disse que seu dia estava sendo insano, desanimador e preocupante. Para o coronavírus, pelo menos, temos vacinas. Não existe vacina para a disfuncionalidade e a divisão política dos EUA, que é o país mais poderoso do mundo. Há muitas pessoas pedindo o impeachment de Trump ou o acionamento da 25ª Emenda. Mas não acho que ele vá ser condenado no Senado [controlados ainda pelos republicanos, até a posse dos dois senadores democratas eleitos em segundo turno pelo Geórgia], porque depois de tudo o que aconteceu, mais de cem membros do Partido Republicano ainda votaram para derrubar a eleição. Isso é loucura.
Biden, que foi senador por 35 anos, com frequência é lembrado como um grande articulador no Congresso. Isso não seria um ponto a favor de seu governo?
Biden vai ter que lidar com isso, mas ele é o presidente mais velho já eleito nos EUA e vai assumir o governo em meio a uma grande crise e a uma onda de desinformação maciça. As pessoas ficarão de olho em qualquer deslize dele, e a reação popular tende a ser desproporcional. Enquanto isso, o mundo todo olha para os EUA e não sabe se pode realmente confiar neles, se a liderança americana ou mesmo seu modelo de democracia são sustentáveis. Se isso acontecesse em um país como a Turquia, talvez não nos importássemos tanto, mas, como são os EUA, todos nós nos importamos muito.
Os EUA vão se unir depois do que aconteceu na quarta-feira?
Não, não e não. Metade do país ainda acha que a eleição foi roubada. Dependendo de qual canal de notícias você assiste, quais pessoas você segue nas redes e em quem você vota, sua visão de mundo é completamente diferente. Não existe mais um mecanismo de união do país. É preciso entender o quanto nossas instituições políticas se desgastaram ao longo das últimas décadas. A união nacional que existiu após o 11 de Setembro e Pearl Harbor, que foram os piores desastres para os EUA, não existe mais. Muitos republicanos discursaram [na noite de quarta-feira] como se nada tivesse acontecido, condenando a violência, mas não Trump. Esse momento não é um ponto de inflexão para os EUA, e sim um grande obstáculo na estrada — onde ainda estamos dirigindo nosso carro.
Em que medida a reputação internacional dos EUA foi afetada?
A reputação internacional dos EUA sofreu um dano enorme. Em 1989, o mundo todo viu que os EUA tinham um modelo de governança eficaz e, inclusive no bloco soviético, as pessoas passaram a querer um sistema igual, por isso se revoltaram e derrubaram o muro. Hoje, ninguém olharia para os EUA e diria: “Quero que meu país funcione assim”. Você pode até querer viajar para os EUA, que seus filhos estudem aqui, comprar uma casa ou trabalhar nos EUA, mas não gostaria que o sistema político de seu país funcionasse como o dos EUA. Os próprios americanos, cada vez mais, não acreditam que sua democracia funcione para eles.
E as relações com potências não-aliadas?
Se você é a China ou a Rússia, por exemplo, você vê esse momento como uma oportunidade de argumentar pela equivalência moral dos sistemas. Você poderia dizer para os EUA: “Vocês não podem nos dar um sermão sobre direitos humanos” ou “Olhe para você, você não pode nos dizer como fazer uma eleição”, e isso é lamentável. Mesmo os aliados americanos não têm mais tanta certeza se os EUA estão realmente comprometidos com as causas que dizem estar. E isso também é um problema, porque não há ninguém que possa responder se os EUA não fornecerem liderança global. Os EUA ainda são o país mais poderoso do mundo.
Que impactos isso terá na política internacional do governo Biden?
Biden vai se engajar novamente com a OMS, com o Acordo de Paris para o clima, o acordo nuclear iraniano, todas essas coisas. E as pessoas querem isso. Os aliados americanos ficarão mais confortáveis com Biden do que estavam com Trump. Mas isso é muito diferente de dizer que tudo vai voltar a ser como era antes. Essa erosão aconteceu ao longo de décadas, e vai ser preciso mais que um presidente para superá-la, especialmente porque os problemas subjacentes são muito significativos.
A que “problemas subjacentes” o senhor se refere?
Os americanos não estão acostumados com o verdadeiro multilateralismo. Estamos acostumados a sentar com nossos aliados e dizer: “Aqui está o que queremos fazer. Espero que você o siga”. Biden terá que adotar uma abordagem muito mais humilde, se comprometer muito mais para conseguir que os países façam o que ele quiser. Não será uma tarefa fácil, embora seja útil o fato de que ele terá uma maioria no Senado, com 50% dos senadores e o voto de desempate.
Essa então seria uma grande oportunidade para Pequim virar o jogo contra Washington?
Os EUA ainda são, de longe, o país mais poderoso do mundo. Mas, para fazer com que os países trabalhem com você quando a ordem geopolítica está se fragmentando e as instituições estão cada vez menos alinhadas às suas prioridades, você precisa ser capaz de persuadir os países a se juntarem a você. O problema é que o poder brando dos EUA está desgastado, mesmo com a persistência do hard power, e também os seus aliados estão mais fragmentados. O Reino Unido deixou UE, então a Europa está mais dividida, enquanto a China está ficando mais forte e a Rússia mais fraca. O ambiente geopolítico também é mais desafiador.