Escritora britânica conversou com a poeta e jornalista Stephanie Borges sobre o livro ‘Garota, Mulher, Outras’ e também sobre sua ascendência brasileira
Escritores, leitores e editores não estão tropeçando nas ruas de pedra de Paraty, mas a Festa Literária Internacional da cidade, a Flip, começou nesta quinta-feira, 3, em uma mesa virtual com a escritora britânica Bernardine Evaristo (vencedora do Booker Prize em 2019 com o livro Garota, Mulher, Outras) e a poeta carioca Stephanie Borges. As duas conversaram sobre o romance, sobre a ascendência brasileira da escritora, representatividade e identidades sexuais, na abertura oficial da primeira edição virtual da Flip — a 18.ª no geral.
Se o charme da cidade do sul fluminense, as buscas pelos concorridos restaurantes e a cerveja nos bares em frente à Praça Matriz estão impossibilitadas pela pandemia, a literatura, o tema central das festividades, continua agindo — Borges iniciou a mesa comentando como o livro, um romance escrito em forma livre, semelhante à poesia na página, ressoa tanto entre leitores e leitoras no Brasil. Alguns deles, no chat do mesa transmitida pelo Youtube, comemoravam o fato de estar “presenciando” suas primeras Flips.
“É realmente animador ouvir que o livro tem relevância no Brasil em termos de experiências negras por aí”, disse Evaristo, desde Londres, onde vive — a mesa ocorreu ao vivo. “O que é interessante é que o romance está sendo traduzido e alcançando pessoas em outros países. Eu não pensava numa audiência global, mas amo o fato de ter algum impacto entre as mulheres negras brasileiras.”
Ela então comentou o que chama de “fusion ficction” (ficção de fusão), a forma que encontrou para narrar suas histórias, cujo ápice se deu no livro, publicado no Brasil este ano pela Companhia das Letras. “É experimental na forma e radical em seu conteúdo. A linguagem parece poesia, mas não é exatamente poesia. Acho uma forma muito libertadora de escrever. O livro seria muito diferente se eu tivesse escrito parágrafos tradicionais. Em termos de personagens, no jeito que tentei trazer suas vidas à página.”
O fato de romper com a “gramática ortodoxa” do inglês, conta, a permitiu novas descobertas sobre a trama e sobre as próprias personagens. “Eu escrevia e os personagens iam crescendo. Isso é maravilhoso no processo criativo para mim. Algumas personagens são baseadas livremente em pessoas que conheço, ou em mim mesma. Cresci cercada de mulheres negras, encontrei e tive amizades com mulheres negras… Ao escrever esse romance, percebi que todas elas foram absorvidas, ao longo de todas essas décadas. De um jeito, elas aparecem. Eu escrevi um livro sobre elas, sobre nós.”
Em seus trabalhos de ficção, Bernardine, que nasceu em Londres, em 1959, filha de mãe inglesa e pai nigeriano com ascendência brasileira, costuma explorar as vidas de membros da diáspora africana. Em Garota, Mulher, Outras, ela conta a história de 12 personagens (11 mulheres e uma personagem não-binária) cujo ponto em comum é a vivência na capital inglesa após o Brexit, mas também mistura diferentes perspectivas e origens.
“Como escritora, amo viajar, tenho uma descendência multiétnica”, disse. “Acho emocionante escrever sobre lugares diferentes, recriar partes do mundo. A experiência britânica negra é da migração. É interessante para o leitor ter geografias múltiplas e eu amo a experiência de criar locais como se eles fossem logo ali.”
Ela contou brevemente de suas duas passagens pelo Brasil: uma viagem com uma prima em 1992 (“a gente não tinha dinheiro”, riu), em que passou por partes do Rio, da Bahia e da Amazônia, e numa visita recente, em 2013, para a Feira Literária das Periferias, a Flup. “Li muito pouco a literatura brasileira”, admitiu, porém.
Questionada por uma leitora sobre suas influências, ela foi categórica em citar escritoras americanas: Toni Morrison, Alice Walker, Audre Lorde, e antologias. “Me sinto distante de escritores brancos britânicos, porque não havia identificação. Seus Olhos Viam Deus, Zora Neale Hurston, é um dos meus livros favoritos de todos os tempos.”
Em outro momento, a escritora também falou sobre apropriação cultural. “É complicado. Minha opinião pessoal é que tenho total liberdade para tomar qualquer perspectiva (na ficção), mas ela vem com responsabilidade. Ao criar ficção, não há certo ou errado, mas há certos fatos que você precisa saber para escrever sobre algumas comunidades… mas talvez essas não sejam as palavras. A conversa mais interessante é sobre como fazemos isso, como contamos uns as histórias dos outros. É também sobre a recepção, a edição do livro. O trabalho de um escritor é habitar personagens que não são ele ou ela mesma. É se engajar com a sociedade do presente, passado e futuro. Mas uma complicação, por exemplo: pode ser que escritores cisgênero escrevam sobre a experiência trans, aí não tem espaço para escritores trans publicarem. De qualquer forma, acredito na literatura como um grande veículo para construir pontes, entre culturas, sociedades e psicologias. Todos temos uma humanidade compartilhada.”
A Flip continua com uma programação virtual até o próximo domingo, 6. Todas as mesas são gratuitas e podem ser acessadas pelo Youtube da Festa.