Em rara entrevista, escritora italiana fala sobre processo de criação, literatura feita por mulheres, inspirações e de personagens preferidos
Começou a contagem regressiva: na terça-feira, 1º, a editora Intrínseca libera a primeira tiragem (20 mil exemplares) de A Vida Mentirosa dos Adultos, novo livro da escritora italiana Elena Ferrante. A expectativa é mundial, pois a obra chega também em outros países na mesma data, com exceção da Itália, onde o lançamento aconteceu no ano passado.
Trata-se de um fenômeno – Elena é uma autora que dosa ingredientes literários com tanta precisão a ponto de arrastar atrás de si milhões de leitores apaixonados. Os volumes que integram a tetralogia napolitana, por exemplo, já venderam mais de 11 milhões de cópias ao redor do planeta, além de inspirar uma série na HBO que já tem uma terceira temporada prometida.
Quase todos seus livros se passam em Nápoles, a caótica cidade à sombra do Vesúvio, no sul da Itália. Em uma era pré-pandemia, o bairro operário de Rione Luzzatti, que inspirou o cenário da tetralogia, seu maior sucesso até agora, virou inusitado ponto de peregrinação de turistas-leitores atrás dos rastros de Lila e Lenù, as personagens principais. Ali a violência social e familiar, a falta de perspectiva da classe operária e o papel da mulher, sempre forçada ao segundo plano, ganham rostos e vozes e se tornam universais.
Mas Elena Ferrante não passa de um pseudônimo de alguém misterioso que prefere o anonimato. Diversas especulações já foram levantadas para revelar sua verdadeira identidade, mas nada foi definido. A escritora só concedeu raras entrevistas e sempre por e-mail. O que acontece agora, no lançamento de A Vida Mentirosa dos Adultos: Elena respondeu as questões propostas por 28 tradutores de sua obra em diversos países – e que o Estadão publica com exclusividade.
Marcello Lino (tradutor para Intrínseca, Brasil)
O dialeto napolitano tem um papel importante nos seus romances. Para muitos personagens, o meio de expressão natural provavelmente seria o dialeto, que, todavia, raramente se manifesta de modo explícito, sendo narrado ou expresso através de um italiano com cadências dialetais. Seria possível dizer, portanto, que, em certos momentos, a senhora também faz um trabalho de tradução, ouvindo as vozes desses personagens em dialeto e transpondo-as para o italiano?
Certamente, mas é uma tradução aborrecida, eu diria descontente. Para me explicar, devo aludir à natureza das personagens narradoras que construí até agora. Nos meus livros, quem narra é a “voz” de uma mulher que tem origens napolitanas, conhece bem o dialeto, é culta, mora há tempos longe de Nápoles e tem sérios motivos para sentir o dialeto napolitano como a língua da violência e da obscenidade. Usei “voz” entre aspas porque não se trata de forma alguma de voz, mas de escrita. Delia, Olga, Leda, Elena, explícita ou implicitamente, narram por escrito e, ao fazê-lo, recorrem a um italiano que é uma espécie de barreira linguística contra a cidade da qual provêm. Em vários graus, elas construíram para si mesmas, digamos, uma língua da fuga, da emancipação, do crescimento, e o fizeram em oposição ao ambiente dialetófono que as formou e atormentou durante a infância e a adolescência. Mas a língua italiana dessas mulheres é frágil. O dialeto, por sua vez, é emotivamente robusto e, nos momentos de crise, se impõe, assume o lugar da língua padrão, chega a irromper com toda a sua dureza. Enfim, quando nos meus livros o italiano cede e assume cadências dialetais, é sinal de que, também na língua, passado e presente confundem-se ansiosa e dolorosamente. Em geral, não imito o dialeto: deixo que seja percebido como a possível erupção de um gêiser.
Kiraly Kinga Julia, tradutora para Park Kiadó, Hungria
Nos seus romances anteriores, o processo de legitimação dos interesses de uma mulher e de sua emancipação exigiam pelo menos décadas, se não uma vida inteira. Neste romance, por sua vez, Giovanna consegue superar os condicionamentos e a rotina em um intervalo temporal magnificamente breve. Trata-se de um caso específico ou de uma mudança geracional, ou seja: as aspirações férteis e os esforços empreendidos por nossas mães contribuíram para o nosso empoderamento?
Giovanna está muito distante de Lila e Lenù. Recebeu uma boa educação laica, hiperdemocrática. Seus pais, ambos professores, esperam que a filha se torne uma mulher livre e autônoma, cultíssima e prestigiada. Mas um pequeno evento obstrui o mecanismo predisposto para ela e a menina começa a perceber a si mesma como o fruto estragado de um ambiente mentiroso. Começa, então, desesperadamente, a eliminar de si a própria educação, como se quisesse se reduzir à verdade pura e simples do próprio corpo vivo. Lenù e Lila também tentam arrancar de seus corpos o bairro, mas, enquanto as duas devem arduamente criar instrumentos que as ajudem a se libertar da miséria real e figurada, Giovanna os encontra já prontos em casa e os usa contra o próprio mundo que os proporcionou. A sua revolta, portanto, já vem equipada, é veloz e determinada. Mas desordenar um “eu” bem cultivado é uma empreitada perigosa. Não mudamos nossa forma para assumir outra que pareça mais verdadeira sem corrermos o risco de não nos encontrar mais.
Jiwoo Kim, tradutora para Hanglisa Publishing, Coreia
Em relação às personagens femininas, os “homens ferrantianos” parecem ser bastante simples ou monótonos. Existe algum personagem masculino que a senhora considera uma figura mais positiva em relação aos outros ou ao qual se sente especialmente afeiçoada?
Enzo. Gosto dos homens cuja força é exercida ajudando-nos, com discrição, a viver. Gosto de homens que não usam palavras demais, sem pieguices, sem esperar recompensas. A verdadeira compreensão de uma mulher me parece o mais elevado exercício da inteligência e da capacidade masculina de amar. Coisa rara. Não quero falar aqui dos homens toscos, violentos, cuja última encarnação são os agressores vulgares nas mídias sociais ou na TV. Acho mais útil falar dos cultos, dos companheiros de trabalho e de estudo. A maioria continua a nos tratar como animais graciosos e só nos dão algum crédito quando querem brincar um pouco conosco. Uma minoria aprendeu superficialmente um formulário de “amigos das mulheres” e quer explicar o que devemos fazer para nos salvar, mas, assim que esclarecemos que precisamos nos salvar sozinhas, o verniz da civilização começa a rachar e surge o velho homenzinho insuportável. Não, sob todos esses aspectos, nossos viris educadores devem ser reeducados. Por ora, confio apenas em Enzo, o companheiro paciente de Lila. Claro, pode acontecer que até esse tipo de homem a certa altura se canse e vá embora, mas pelo menos deixa uma bela lembrança.
Esty Brezner, livreira, Adraba, Jerusalém, Israel
Em sua opinião, até que ponto uma pessoa pode “deixar Nápoles”, ou seja, reinventar-se longe das próprias origens e do “destino” que lhe foi atribuído ao nascer?
Vamos começar destacando que ir embora não é trair as próprias origens. Pelo contrário, é necessário partir para poder atribuir a origens si mesmo e colocá-las como alicerce do nosso crescimento. Ao vagar, transformamos nossos corpos em depósitos abarrotados. Os novos materiais exercem peso sobre os materiais originais, acabam por modificá-los fundindo-se a eles, confundindo-se. Nós mesmos nos agitamos entre vários modos de ser, ora enriquecendo a nossa identidade, ora empobrecendo-a com subtrações. Mas o local de nascimento resiste. Ele é o fundo sobre o qual nossas experiências primárias estacionam, o primeiro exercício do olhar, a primeira imaginação, a primeira expressão. E, quanto mais descobrimos que esse fundo é robusto, mais variada é a nossa vivência dos outros lugares. Nápoles não seria a minha única verdadeira cidade se eu não tivesse descoberto cedo, em outros lugares, no embate com os demais, que lá, e só lá, comecei timidamente a me chamar de “eu”.
Ana Badurina, tradutora para Profil, Croácia
Em todos os seus romances, as relações entre mulheres e homens são muito frágeis, em sua maioria infelizes, ao passo que as experiências realmente formativas, em várias direções, são aquelas vivenciadas entre mulheres. Seria do seu interesse aprofundar, tanto como escritora quanto como leitora, uma narrativa na qual fosse possível uma relação relativamente “feliz” entre um homem e uma mulher? Ou julga que uma história do gênero dificilmente pode resultar convincente em âmbito literário?
Muitas vezes, o que não resulta convincente na literatura é o resultado de uma leitura edificante da realidade. Não me coloco entre aqueles que julgam que a felicidade começa quando a história acaba (penso na fórmula: “e viveram felizes para sempre”). Certamente é possível contar a história de um casal feliz, conheci vários. Uma vez, até esbocei uma história na qual uma mulher muito infeliz decidia realizar uma investigação, exatamente como em um livro policial, sobre a vida conjugal feliz de seus pais idosos. Mas não quero entediá-la aqui com o desenvolvimento dessa história, Ana. Digo apenas que a senhora sintetizou muito bem aquela pequena história usando a expressão “relação relativamente ‘feliz’ entre um homem e uma mulher”. A felicidade, a meu ver, só pode ser narrada se desenvolve aquele “relativamente” e se expõe os motivos daquelas aspas que a senhora colocou na palavra “feliz”.
Audrey Martel, livreira, Librairie l’Exèdre, Quebec (editora Gallimard)
De que maneira a Itália a condicionou como escritora, ou, para ser mais precisa, de que maneira o lugar no qual se desenrolam os seus romances influencia a história e a vida dos seus personagens?
Uma parte importante da minha experiência se realizou aqui, na Itália. Neste país, está aquilo que me interessa, a começar pela língua que uso desde que aprendi a falar, desde que aprendi a ler e escrever. Quando menina, porém, a realidade cotidiana me incomodava. O que podia ser narrado nunca estava na minha casa, embaixo das minhas janelas, na minha língua ou dialeto, mas em outros lugares, na Inglaterra, na França, na Rússia, nos Estados Unidos, na América Latina etc. Eu escrevia histórias exóticas que apagavam a geografia e a onomástica da Itália. Pareciam-me insuportáveis, eu tinha certeza de que matariam logo de cara qualquer narrativa. A grande literatura que me apaixonava não era italiana ou, se era italiana, encontrava engenhosamente uma maneira de contornar a italianidade de cidades, pessoas, dialetos. Era um comportamento infantil, mas que durou pelo menos até os meus vinte anos. Todavia, quando julguei conhecer suficientemente as literaturas que eu amava, comecei aos poucos a me interessar pela tradição literária do meu país e aprendi a usar os livros que mais me impressionavam para obter uma espécie de impulso e escrever a respeito daquilo que até então me parecera local demais, nacional demais, napolitano demais, feminino demais, meu demais para ser contado. Hoje acho que uma história funciona se for o relato daquilo que somente você guarda dentro de si, se ela se posicionar idealmente dentro de textos que você amou, se você escrever aqui e agora, sobre esse pano de fundo que você conhece bem, com uma competência que você adquiriu vasculhando com paixão a literatura de todos os tempos e de todos os lugares. Quanto aos personagens, é a mesma coisa: revelam-se vazios se você não lhes dá um nó que ora os aperta, ora se afrouxa, um laço que gostaríamos de cortar, mas que perdura.
Dina Borge, livreira, Norli Nye Sandvika, Noruega
O que a inspirou a escrever ‘A vida mentirosa dos adultos’? Acha que os adultos têm o hábito de mentir a respeito da própria vida? Para os outros, para os próprios filhos e também para si mesmos?
Quando criança, eu era uma mentirosa e muitas vezes era punida pelas minhas mentiras. Por volta dos catorze anos, depois de muitas humilhações, decidi crescer e não mentir mais. Mas descobri aos poucos que, enquanto minhas mentiras infantis eram exercícios de imaginação, os adultos, tão contrários às mentiras, mentiam para si mesmos e para os outros com naturalidade, como se a mentira fosse o instrumento fundamental para dar coerência e sentido a si mesmos, para suportar o confronto com o próximo, para se mostrar como um modelo confiável para os filhos. Alguma coisa dessa impressão adolescente alimentou a história de Giovanna.
Demetra Dotsi, tradutora para Ekdoseis Patakis, Grécia
“Desmarginação” é uma das palavras-chave da ‘Tetralogia Napolitana’, ou seja, “a sensação” de Lila “de transferir-se, por frações de segundo, a uma pessoa ou coisa ou um número ou uma sílaba, violando-lhe os contornos”, para usar as suas palavras. Seria possível dizer que Giovanna também sofre uma espécie de desmarginação, talvez de maneira permanente, quando é erguido o véu inconsciente de perfeição da sua família e ela mesma se transfere para uma nova imagem de si mesma?
Sim, agora, enquanto respondo à sua pergunta, me parece que sim. Mas é necessário ter em mente que, em Lila, trata-se de uma reação do corpo, uma patologia, em certo sentido. A desmarginação é o nome que ela usa para designar um terremoto cujo epicentro é uma súbita disfunção dos cinco sentidos. Giovanna me parece mais próxima de Elena, que, ao escrever, adapta para si mesma a palavra utilizada por Lila e acentua seu valor metafórico. Nela, a desmarginação se torna o ato de forçar a si mesma, de se expandir para fora do bairro, de cruzar fronteiras, de se tornar algo sempre diferente, de rasgar véus com sofrimento, mas também com orgulho. Lila é fisicamente sobrepujada pelos seus sintomas, adoece de tão violentos que são. Elena e Giovanna se desmarginam na metáfora, e as metáforas doem um pouco menos.
Elsa Billund, livreira, Billunds Boghandel em Fredericia, Dinamarca
Por que está voltando a Nápoles nesse seu novo romance? O que, nesse lugar específico, exige ser narrado várias vezes? Consegue se imaginar escrevendo futuramente sobre outro lugar qualquer? E acha que seria mais simples ou mais difícil?
Podemos escrever sobre qualquer lugar, o essencial é conhecê-lo a fundo, senão corremos o risco da superficialidade. Estive em muitos lugares, redigi páginas e mais páginas de anotações. Por exemplo, tenho muitas anotações sobre Copenhague e, se quisesse, poderia usá-las em uma história, como fiz, digamos, com Turim, cidade que adoro. Mas sinto que são lugares que não me pertencem e, se eu escrevesse sobre eles, seria para me apropriar deles. Com Nápoles, é diferente. Nápoles já faz parte de mim, e eu, de Nápoles. Sobre Nápoles, não preciso procurar um olhar, já o tenho desde que nasci. Escrevo e reescrevo a respeito para ver a cidade e ver a mim mesma, e para que, cada vez mais nitidamente, a cidade me veja.
Dr Chen Ying, tradutora para Shangai99, China
Nápoles é uma cidade irritante, para o bem e para o mal, e é sempre a protagonista dos seus romances. Em ‘A vida mentirosa dos adultos’ essa cidade foi dividida em dois mundos: bairro alto e bairro baixo. No seu novo romance, a senhora tentou conectar esses dois microcosmos?
Sempre fiquei fascinada com a oposição entre alto e baixo. Com algumas simplificações, eu poderia dizer que tendo a construir minhas histórias em torno dos verbos subir, descer, precipitar, escalar. A senhora notou que, no meu último livro, o nexo entre alto e baixo é central. Foi a toponímia da cidade que me encorajou a seguir nessa direção. Em Nápoles, existe realmente uma área em cima de uma colina denominada Bairro Alto. Para chegar até lá, é necessário subir uma rua estreita que se chama San Giacomo dei Capri. Achei interessante que Andrea, o pai de Giovanna, morasse com a família naquele bairro e procurasse apagar, também com o endereço da própria casa, suas origens “baixas”. É a filha, Giovanna, que, no decorrer de sua rebelião adolescente, descobre a artificialidade das fronteiras que o pai quis traçar. A garota infringe a ordem paterna e arrasta o alto para o baixo e o baixo para o alto, fazendo de si mesma o lugar de uma amálgama brusca de elementos antagônicos, o espaço em que belo e feio, novo e velho, fineza e grosseria se misturam, rindo da ânsia de distinção do pai neoaculturado.
Stefanie Hetze, livreira e proprietária da livraria Dante Connection, Berlim, Alemanha
Para Lila e Elena, a experiência da leitura de ‘Mulherzinhas’ assume grande importância. Quais (outras) figuras literárias a fascinaram e marcaram profundamente na adolescência?
Para responder, eu faria uma lista longa e provavelmente maçante. Digamos que eu devorava romances em que as personagens femininas tinham vidas desaventuradas de uma maneira injusta e feroz, cometiam adultério e outras infrações, viam fantasmas. Entre os doze e os dezesseis anos, procurei avidamente todos os livros que tinham nomes de mulheres no título: Moll Flanders, Jane Eyre, Tess dos D’Ubervilles, Effi Briest, Madame Bovary, Anna Karenina. Mas o livro que li e reli de maneira obsessiva foi O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë. Ainda hoje é um livro extraordinário pela maneira como narra o amor misturando bons e péssimos sentimentos, sem interrupção. Catherine é um personagem que, de tempos em tempos, deve ser revisitado. Serve, quando escrevemos, para evitar o perigo de figuras femininas adocicadas.
Monica Lindkvist, livreira, Akademibokhandeln, Suécia
A senhora se identifica com algum dos personagens principais da ‘Tetralogia Napolitana’ ou deste novo romance?
Respondo com um lugar-comum: todos os personagens, até os masculinos, têm algo meu. De resto, esse é um processo obrigatório. Embora conheçamos bastante o corpo dos outros, a única vida interior que conhecemos de fato é a nossa. Portanto, é relativamente fácil aprender a olhar e captar um gesto significativo, uma careta, as características de um modo de andar, de falar, um olhar eloquente. Em contrapartida, é impossível nos transportarmos para a cabeça de outra pessoa: quem escreve corre sempre o risco das simplificações dos manuais de psicologia, e isso é deprimente. Temos apenas a nossa cabeça, e extrair dela um pouco de verdade para dar vida a ficções é um trabalho árduo. Lá dentro, há o vozerio de uma multidão que soma tudo a tudo entre choques e confusão. Por isso, no fim das contas, a vida interior dos outros é o fruto literário sempre insuficiente (linearidade demais, coesão demais, lógica demais) de uma autoanálise extenuante ajudada por uma imaginação vívida. Mas a senhora me pediu para indicar um personagem com o qual me identifico e, como determinei de antemão que daria respostas talvez exaustivas, direi que, neste momento, gosto de alguns traços da tia Vittoria de A vida mentirosa dos adultos. Não sou eu, mas com certeza fico feliz de ter sido a sua autora.
Margarida Periquito, tradutora para Relógio d’Água, Portugal
Eu gostaria de saber se a voz de Andrea em ‘A vida mentirosa dos adultos’, que tanto atormenta Giovanna, é o eco do pensamento de Emma Bovary em relação à sua filha (… comme cette enfant est laide!), juízo que, segundo o que lemos em ‘Frantumaglia’, a senhora queria usar em uma página sua a fim de ponderá-lo e entender se poderia ser uma frase feminina. Sim, mas não se trata apenas de filiação literária. Por muito tempo, quando menina, senti que aquela frase de Emma podia ser algo que me dissesse respeito. Eu dizia a mim mesma: não seria terrível se não apenas meu aspecto físico, mas também certos traços de caráter desagradassem aos meus pais em primeiro lugar?
Giovanna vem, pelo menos em parte, da união do incômodo daquela página com uma ansiedade minha. Quanto à plausibilidade da exclamação “comme cette enfant est laide!” na boca de uma mãe, mesmo que frívola como Emma, não, não resolvi o problema. Atribuí a frase a um pai, no entanto, na história; a mãe de Giovanna não se rebela, não contradiz o marido.
Anna Jampol’skaja, tradutora para Corpus, Rússia
A cidade de Nápoles está entre os protagonistas dos seus livros, inclusive do romance ‘A vida mentirosa dos adultos’. O que representa para a senhora essa cidade, suas paisagens, seus habitantes, sua língua? A propósito da língua: alguma vez a senhora pensou em seguir o exemplo de Andrea Camilleri, cujos romances muitas vezes são ambientados na Sicília, e elaborar uma língua especial misturando o italiano literário e o dialeto napolitano?
Nápoles é uma cidade complexa, que não pode ser reduzida a uma fórmula literária ou sociológica. Eu a sinto como a minha cidade, a cidade dos meus antepassados. Nela existe um longo fluxo de experiências minhas e de muitas pessoas que guardo na memória com suas vozes. As vozes, justamente. Nápoles é impensável sem a sua sonoridade dialetal. Todos os degraus sociais da cidade são permeados pelo dialeto. Conheci pessoas abastadas, cultíssimas, que dominavam diversos idiomas e que, contudo, utilizavam em todas as ocasiões o dialeto napolitano em suas vertentes plebeias e também em suas expressões de finíssima execução literária. Eu, no entanto, nunca tive uma boa relação com o dialeto, tanto em sua forma mais dura quanto em sua forma mais cativante. Os motivos são muitos, aqui só revelo um, mas que contém todos os outros. Mas, antes, devo relatar brevemente um antigo mal-estar meu. Sobretudo quando menina, quando eu tinha que traduzir para a escola trechos em latim e grego para o italiano, ou então tinha que transpor uma centena de versos do italiano do século XVI, digamos, para o italiano contemporâneo, e eu tinha pressa porque eram tantos os deveres que a tarde não bastava. Algumas vezes, sofri um esgotamento: sentia os idiomas como um fluxo de vozes que atravessavam o tempo e acavalavam-se, uma espécie de teatro situado dentro da minha cabeça, onde mortos e vivos falavam todos juntos com um fragor que me extenuava. Essa alucinação passou, mas não com o dialeto napolitano. Nesse caso, ainda perdura e de uma maneira que vai muito além da minha antiga sugestão da adolescência. O dialeto napolitano me parece ter uma tal potência sonora, uma carga emocional tão devastadora, que não quero cometer a afronta de prendê-lo dentro do alfabeto, como um tigre dentro de uma jaula. Quando escrevo, eu o vigio, mantenho-o sob observação, uso-o com apreensão. E sempre excluindo sua tonalidade irônico-patético-sentimental-bonachona. Prefiro sua tonalidade agressiva, sarcástica, uma ameaça para as mulheres que eu narro.
Ioana Zenaida Rotariu, livreira, St. O. Iosif da Brasov, Romênia
Quanto, na sua opinião, as amizades da nossa vida nos mudam?
Uma amiga não nos muda, mas suas mudanças acompanham discretamente as nossas, em um contínuo, recíproco esforço de adaptação.
Muauia Al-abdulmagid, tradutora para Dar al Adab, Líbano
No quarto volume da ‘Tetralogia Napolitana’, a senhora alude à universalidade da violência humana e expõe ao leitor indícios que dizem respeito ao mundo árabe e à cultura islâmica: o marido de Dede é de origem iraniana e seu filho se chama Hamid etc. Poderíamos, portanto, esperar de Elena Ferrante um romance que se concentre no conflito atual entre Islã e Ocidente, focando em temas políticos contemporâneos como racismo, terrorismo, imigração e islamofobia? Além disso, a senhora faz uma breve alusão a uma das cenas mais presentes na história humana contemporânea: o 11 de Setembro de 2001. Por acaso, vê nessa cena um exemplo concreto de “desmarginação”? Existe talvez uma ligação visual entre a queda das duas torres e o terremoto que atingiu Nápoles e aterrorizou Lila a ponto de fazê-la ver pessoas “se desmarginando”? “Desmarginação” é, portanto, a metáfora de uma metamorfose violenta?
Volto com prazer à palavra desmarginação. Sim, ela tem a ver com violência, mas em um sentido que resume os efeitos de uma força fora de controle que rompe os contornos de pessoas e coisas. As margens artificiais dentro das quais nos fechamos e dentro das quais fechamos os outros de repente tornam-se enganadoras e pouco resistentes, de maneira que, diante dos olhos de Lila, verifica-se o espetáculo atroz da destruição e da autodestruição. E também quando, ao longo da narrativa, esse vocábulo muda sutilmente de sentido, tornando-se metáfora de crescimento, revelação da verdade etc., ele é sempre acompanhado por essa ideia de rompimento, de dilaceração, de explosão. Nossa vida comum é cheia de ações explosivas, não escapamos da violência, nem mesmo nas figuras de linguagem. Escrevi bastante a respeito e – sobre a sua primeira pergunta – respondo que talvez não, a esta altura é improvável que eu escreva sobre terrorismo, racismo, islamofobia: o final da Tetralogia Napolitana queria simplesmente mostrar quanto o horizonte de Elena havia se aberto através de suas filhas, seus genros, seus netos, não mais presos ao bairro, mas ao pano de fundo amplo e perigosíssimo do planeta. Entretanto, continuarei a dizer em todas as ocasiões como detesto a violência, sobretudo contra os mais fracos, mas também dos fracos contra outros fracos e até mesmo a violência justificada pela intolerabilidade de todas as formas de opressão. O ser humano é um animal feroz que procurou domesticar a si mesmo com as religiões, com as advertências da sua terrível história, com a filosofia, com a ciência, com a literatura, com o nexo temerário entre bondade e beleza, com uma regulamentação totalmente viril do conflito, desde o duelo até a guerra. Mas, até agora, o resultado é uma forma difusa de hipocrisia: a guerra, por exemplo, prevê a punição de crimes específicos definidos como crimes de guerra, como se a própria guerra não fosse por si só, pela sua natureza, um crime horrível; os direitos humanos, que deveriam estar pacificamente consolidados, representam um campo permanente de batalha e são continuamente violados ou defendidos; o Estado detém o monopólio da violência, mas, em primeiro lugar, isso não é verdade e, em segundo, é evidente demais que tal monopólio sofre abusos: porções amplas da população planetária sabem que precisam temer antes de mais nada as forças da ordem constituída, mesmo onde as tradições democráticas são robustas. Nem mesmo nós, mulheres, somos alheias à prática da violência, e isso é algo que deve ser dito com veemência. Mas estamos desde sempre tão expostas à violência masculina e fomos tão excluídas dos modos como os homens a exercitaram que talvez somente nós, hoje, possamos encontrar uma maneira não violenta de bani-la para sempre. A não ser que, confundindo emancipação e cooptação, findemos nos entregando também nesse campo à tradição masculina da agressão, do extermínio, da devastação, tomando para nós, ao mesmo tempo, suas justificativas doutas e suas regulamentações filisteias.
Enza Campino, Libreria Tuttilibri, Formia, Itália
Enquanto penso que a verdade presente em suas histórias é a chave universal que faz palpitar os corações de leitores tão diversos entre si no que diz respeito a cultura e área geográfica (saber que Michelle Obama e um administrador chinês, Madonna e uma menina turca vão lê-la), pergunto em que medida sua relação com a realidade, que conflui para os seus romances, é influenciada por esse dado de fato.
Escrever é uma atividade muito privada. Sempre escrevi para mim mesma e muitos textos nunca saíram das minhas gavetas. Mas, todas as vezes que decidi tornar pública uma das minhas histórias, sempre esperei que ela se afastasse o máximo possível de mim, que viajasse, que falasse idiomas diferentes daquele no qual eu a havia escrito, que fosse parar em ambientes e casas fechadas ao meu olhar, que mudasse de mídia e se transformasse de livro em teatro, filme, televisão, história em quadrinhos. Eu pensava assim e não mudei. Minha escrita é extremamente tímida enquanto escrevo, mas, quando decide virar livro, ela se torna ambiciosa, é imodesta. Quero dizer que eu não sou os meus livros, não tenho, sobretudo, uma vida presunçosa como a deles. Os livros que cheguem aonde são capazes de chegar, eu continuarei a escrever de acordo com o meu gosto, como e quando sentir vontade. Minha independência, a partir do momento em que meus livros assumem uma veste editorial e vão embora, não tem nada a ver com a deles.
Lola Larumbe, livreira, Librería Rafael Alberti, Madri, Espanha
Muitos personagens dos seus romances se debatem entre amor e amizade. Quem a senhora gostaria de ter ao seu lado para sempre: o amigo ou o amante?
Prefiro um amante que seja capaz de uma grande amizade. Essa mistura é dificilmente compreensível quando somos jovens, mas, com a maturidade, se tivermos sorte, aos poucos ela abre caminho. Sempre gostei muito de encontrar nas velhas correspondências entre amantes expressões como “meu amigo”, “minha amiga”. E até o apelativo “irmã”, que aparece na literatura cavalheiresca e prossegue por séculos, nunca me pareceu um sinal do ocaso do desejo, pelo contrário.
Suomalainen kirjakauppa, livraria, Finlândia
Como Lila e Lenù chegaram até a senhora? Por que quis contar especificamente a história delas? Há algo que gostaria que os seus leitores soubessem a seu respeito? E de que maneira viver em Nápoles é diferente de, por exemplo, viver em Roma? O que torna Nápoles tão única?
Lenù e Lila são fantasmas, como todos aqueles que habitam a escrita. No início, eles se manifestam com aparições breves, fugidias, se parecem um pouco com pessoas que não vemos há tempos ou que morreram. Nós os fixamos com poucas frases, os fechamos em um caderno e, um tempo depois, relemos. Se as frases têm força, os fantasmas reaparecem e nós os capturamos com mais palavras. E assim por diante: quanto mais a cadeia das palavras ganha energia, mais aparições desbotadas ganham carne e ossos, definição, arrastam atrás de si casas, ruas, paisagens, Nápoles, uma trama na qual tudo se move e tem calor, e parece que só você podia dar àquelas formas indefinidas algum contorno e até mesmo uma aparência de vida real. Mas nem sempre dá certo; aliás, com muita frequência dá errado. Os fantasmas erram de endereço, são instáveis demais, as palavras surgem falsas ou esmaecidas, a cidade é só um nome e, se alguém pergunta o que a torna diferente, digamos, de Roma, você não sabe a resposta, sobretudo não a encontra nas frases mais ou menos pálidas que você escreveu.
Ieva Mazeikaite, tradutora para Alma Littera, Lituânia
Muitos protagonistas dos seus romances, assim que entram na idade adulta, deixam sua cidade natal. Em que medida esse afastamento de Nápoles influi no desenvolvimento do personagem?
Ir embora é importante, mas não decisivo. Lenù vai embora, Lila nunca abandona Nápoles, mas ambas se desenvolvem, têm uma vida cheia de acontecimentos. Eu, como disse, me sinto próxima das escolhas de Elena. Não devemos temer as mudanças, tudo o que é outro não nos deve assustar. Mas ficar não me parece errado, o essencial é que o fato de nos fecharmos para sempre em um espaço não empobreça nosso eu. Gosto das pessoas que sabem viver aventuras intrépidas até mesmo indo de uma ponta à outra da rua em que nasceram. Foi assim que imaginei Lila.
Ivo Yonkov, tradutor, e Dessi Dimitrova, livreira, para Colibri, Bulgária
Por que a senhora continua a voltar a um passado doloroso? Para a senhora, escrever é, acima de tudo, uma forma de autoterapia? Além disso, o que acha da literatura estudada nas escolas italianas? Acha que reflete as dinâmicas do mundo em que vivemos? Que valores proclama? E esses valores também são compartilhados pela senhora?
Não, nunca considerei escrever uma forma de terapia. A escrita, para mim, é algo totalmente diferente: é girar a faca na ferida, algo que pode causar muita dor. Escrevo como aquelas pessoas que viajam de avião o tempo todo por necessidade, mas têm medo de não sobreviver, sofrem durante todo o voo e, quando aterrissam, ficam felizes mesmo estando reduzidas a um fiapo. Quanto à escola, sei pouco de como ela funciona hoje. A que eu frequentei transformava leituras, que achei maravilhosas quando adulta, em exercícios chatíssimos que deviam ganhar uma nota. Aquela escola ensinava literatura eliminando o prazer da imaginação e da identificação. Quando removemos a energia de uma frase para brincar com um adjetivo ou uma figura de linguagem, deixamos na página apenas combinações alfabéticas macilentas e transformamos os jovens, na melhor das hipóteses, em requintados vendedores de vento.
Fleur Sinclair, livreira, Seven Oaks Bookshop, Sevenoaks, Reino Unido
Com tantos acontecimentos em um romance que começa com algo que é dito e nunca poderá ser retratado, em um momento especialmente sensível da adolescência de Giovanna, me pergunto se há algo que a senhora gostaria de dizer ao seu eu adolescente, fazendo-a sentir vontade de voltar no tempo (ou algo que a senhora gostaria que o seu eu adolescente tivesse ouvido por acaso). Enfim, algo que poderia ter mudado o rumo da sua vida em relação ao modo como a senhora efetivamente a viveu até agora, algo que tivesse lhe dado a confiança e o impulso para fazer alguma coisa mais cedo ou que a tivesse impedido de realizar ações das quais hoje se arrepende.
Em nossa vida cotidiana, o que passou passou. Isso para não falar da adolescência: no que me diz respeito, foi um tempo parado, desolado. Quando adulta, sempre evitei dizer a um adolescente, mesmo quando aparentemente feliz: sorte a sua. Acho que, quanto mais cedo aquele período terminar, melhor. Mas escrever a respeito, em contrapartida, é apaixonante. Acho que um pedacinho da adolescência aflora em todos os livros, a despeito do que é narrado, justamente porque aquela é uma fase de trovões, raios, tempestades e naufrágios. Você é quase menina, é quase adulta, o corpo por um tempo eterno não se decide a abandonar uma forma e assumir outra. O próprio idioma parece não ter o módulo certo para você, em dado momento você fala como uma menina, em outro se expressa como uma mulher feita e, em ambos os casos, sente vergonha. Na realidade, o passado não muda. Mas, quando escrevemos, a adolescência é inesgotavelmente mutável. Todos os fragmentos podem encontrar sua posição e, de repente, merecer a dignidade de um significado dentro da história. Quando você escreve, aquele tempo parado e asfixiante, observado a partir da margem da vida adulta, começa a fluir, se compõe e se recompõe, encontra os seus motivos.
Fe Fernández Villaret, livreira, L’Espolsada Llibres, Corró d’Avall, Barcelona, Catalunha
Em primeiro lugar, gostaria de dizer que achei extremamente prazerosa a leitura dos quatro livros da ‘Tetralogia Napolitana’. Como livreira, indiqueio-os para todo mundo, mas foram lidos principalmente por mulheres porque, desde o início, foram classificados como leitura “para mulheres”. O olhar dos seus livros é feminino, mas isso não significa que eles sejam exclusivamente para mulheres, pelo contrário. Na sua opinião, por que os livros que olham para o mundo com um olhar feminino não interessam aos homens?
Durante anos, a vida, a história e tudo o que acontecia nos foi contado por eles. Agradeço por sua contribuição para tornar o universo feminino mais rico e plural. O que dizer? Os homens, até os muito cultos, muitas vezes sequer tentam ler os nossos livros. Eles os consideram, como a senhora destaca, “para mulheres” e, com essa fórmula, não apenas parecem proteger sua virilidade de qualquer possível degradação, como, sobretudo, nos negam a dádiva da universalidade, que atribuem apenas a si mesmos. Eles escrevem livros para homens e mulheres, nós, em contrapartida, conseguimos escrever apenas para mulheres. É um dos vários sinais de como eles continuam a nos considerar seres humanos de nível inferior. E, às vezes, nós mesmas parecemos concordar com eles, falta pouco para que voltemos a exclamar como a Ifigênia de Eurípedes: “Melhor que viva um homem do que mil mulheres.” Fomos educadas com a ideia de que uma pessoa do sexo masculino tem, entre suas várias e maravilhosas prerrogativas, aquela de resumir em si o mundo todo. Um homem, quando produz obras grandes, pequenas, minúsculas, se dirige com naturalidade ao gênero humano, aos marcianos, aos venusianos, se sente preparado para o possível e o impossível. A nós foi dito que não nascemos para isso. A inteligência deles, o talento deles são méritos. Nossa inteligência, nosso talento são defeitos. Cito um exemplo: o extraordinário Baudelaire, ao qual todos e todas nós devemos muito, escrevia que a beleza feminina dura mais se não for acompanhada pela inteligência e, com seu jeito provocador, destacava que quem se apaixonava por uma mulher inteligente era pederasta. As coisas mudam, é claro. Estão mudando, mas, sobretudo, de maneira profunda, estão mudando devagar demais. Ainda hoje, quando afirmo que a grande literatura não é universal, apenas grande literatura masculina, causo incômodo, pareço um pouco grosseira. Mas é verdade.
Malgorzata Zawieska, livreira, KOREKTY, Varsóvia, Polônia
Em seus livros, a senhora borda uma questão importante: a emancipação da mulher através da vida profissional. Como considera os possíveis efeitos do coronavírus na situação feminina? Acha que agravará as disparidades econômicas, determinando retrocessos em relação a algumas conquistas no caminho da emancipação? Acredita que esse poderia ser um tema interessante para uma escritora?
Ainda estou sob o efeito do medo e desnorteada pela facilidade com que as já péssimas condições de vida dos mais fracos do planeta pioraram em poucas semanas. Não me interesso especialmente pelo vírus. É a fragilidade do sistema que me assustou, tanto que tenho dificuldade para me explicar. Quero dizer que tudo se redimensionou bruscamente. A obediência foi parar no topo da hierarquia de valores em um intervalo extraordinariamente breve. E as mulheres receberam mais ordens do que de costume, encarregadas, como tradicionalmente são, de deixar de lado a si mesmas para se ocupar da materialíssima sobrevivência da família: nutrir, vigiar, cuidar, fechar, fechar-se e, enquanto isso, sentir-se culpadas por tudo, como se, até aquele momento, tivessem tido pretensões demais. Nesse cenário, parece inevitável o retrocesso para enfrentar rebeliões primárias: alimento, água, um teto, remédios. Sim, acho que mais do que narrar a difusão da pandemia, deveria ser narrada a difusão do medo que muda e tira sentido das reivindicações elevadas, de ambições refinadas, enfim, de todo aquele “fazer” que fervilha quando o sistema econômico-social-cultural se finge sólido. Mas, repito, preciso pensar. Por enquanto, o problema é como fazer para que a questão feminina permaneça central. É necessário que ela seja sentida como não menos explosiva do que, por exemplo, a condição dos afro-americanos nos Estados Unidos ou as migrações entre guerras e miséria.
Tim van den Hoed, livreiro, De Utrechtse Boekenbar, Utrecht, Bélgica
O fascínio que Nápoles exerce sobre mim me levou a visitar a cidade duas vezes. Os quatro romances da’ Tetralogia Napolitana’ e as minhas experiências pessoais na cidade coexistem e, às vezes, se misturam, justamente como os vários personagens nos romances. Em que medida o uso de diversos personagens foi importante para traçar um retrato de Nápoles? E existe um personagem secundário do qual a senhora se sente mais próxima?
O senhor tem razão em destacar que o nosso olhar é nosso e, ao mesmo tempo, nele se confundem tantos outros pontos de vista expressos em romances e através de várias outras formas. Acontece com qualquer pessoa e, naturalmente, também com quem escreve, quem oferece ao público seu próprio modo de ver, absolutamente único e, todavia, de forma alguma singular. De fato, nele convergem antepassados e antepassadas, geografia, história, filosofia, ciências, os livros que lemos, as técnicas narrativas orais e escritas que aprendemos, muitíssimos lugares-comuns e, sobretudo, nossos contínuos embates com os outros, a maneira como deduzimos e imaginamos os sentimentos e pensamentos deles, o que é indizível, mas que, se decidirmos contar, precisaremos tentar encontrar as palavras certas. No relato de Nápoles – mas também no relato de objetos bem mais simples do que Nápoles -, entram em ação todas essas coisas e, geralmente, quem escreve sequer se dá conta. É um contínuo misturar, contaminar até estragar que fabrica um mundo falso, mas que, se bem-sucedido, finda contendo mais verdade do que o verdadeiro: a verdade que está ali, diante dos nossos olhos, mas que nunca vimos. Mas quem escreve realmente nunca sabe se esse resultado foi de fato alcançado. Nem o sucesso traz essa certeza. Aliás, assim que termina o livro, o autor se torna menos consistente do que os personagens secundários. Eu, como autora, se devo dizer a verdade, me sinto como a mãe dos Solara: tem todo o bairro nas mãos com aquele seu livro vermelho de agiota, todavia é uma senhorinha de pouquíssimo destaque. Aparece somente em poucas linhas, incomodada pelo calor, abanando-se.
Readings Victoria, livraria, Austrália
O que significa para a senhora ouvir falar de “escrita feminina”?
Agarro-me à sua pergunta para me explicar melhor. Não há nada de errado em dizer “escrita feminina”, mas é necessário fazê-lo com circunspecção. Como existe uma vivência que é indubitavelmente feminina, toda a sua expressão oral ou escrita deveria ter um selo inequívoco de mulher. Mas, infelizmente, não é o que acontece. Tudo o que nós, mulheres, usamos para nos exprimir pertence pouco a nós, é um produto histórico com domínio masculino, em primeiro lugar a gramática, a sintaxe, as palavras, o próprio adjetivo “feminino” com suas várias conotações. A escrita literária, é claro, não é exceção. Portanto, a literatura das mulheres só pode surgir, com esforço, de dentro da tradição masculina, mesmo quando afirma a si mesma com força, mesmo quando busca uma genealogia específica que seja própria, mesmo quando absorve e toma para si a mistura dos sexos e a irredutibilidade do desejo sexual dentro de margens pré-fixadas. Isso significa que somos prisioneiras, que estamos destinadas a sermos de fato ocultadas para sempre pela própria língua com que tentamos falar de nós? Não. Mas é necessário perceber que se exprimir nesse quadro é um processo de tentativa e erro. Precisamos partir constantemente da hipótese de que, apesar de tantos progressos, ainda não somos realmente visíveis, ainda não somos realmente audíveis, ainda não somos realmente compreensíveis, e é preciso voltar a misturar mil vezes a nossa vivência como fazemos com uma salada, reinventando vozes surpreendentes para pessoas e coisas. Trata-se de encontrar o misteriosíssimo caminho (ou caminhos) que, a partir de uma rachadura, de um desvio nas formas já manifestadas, leve a uma escrita imprevisível até mesmo para nós que trabalhamos com isso.
Ivana Dobrakovová, tradutora para Inaque, Eslováquia
Até agora, a senhora sempre usou a ótica de uma narradora adulta (Leda, Olga, Delia) ou então deixou que a protagonista crescesse (Elena) para depois retroceder no tempo na narração; por que mudou no caso de Giovanna?
Não me parece que mudei, mas há algo diferente. Deixei indeterminada a identidade de quem dá forma literária ao eu de Giovanna. Leia novamente, cara Ivana, o brevíssimo prólogo no qual se alude ao “emaranhado que ninguém, nem mesmo quem neste momento escreve, sabe se contém o fio certo de uma história ou se é apenas uma dor embaralhada, sem redenção”. Preste atenção naquele “quem”. É um trecho importante para mim. Sempre imagino minhas narradoras distantes dos fatos narrados. Quando põem a mão na escrita, elas já se sentem bem diferentes do que são na narrativa e devem se aproximar o máximo possível daquilo que foram para conseguir falar de si mesmas de alguma maneira. Também no caso de Giovanna, quem narra está em um tempo distante em relação aos eventos narrados e tem dificuldades em fazer o relato. Mas o fato, digamos, novo para as minhas histórias é que aquele “quem” não é necessariamente Giovanna.
Ann Goldstein, tradutora para Europa Editions, Estados Unidos
Como a senhora trabalha? Faz muitas correções? E de que tipo? Considera-se uma boa editora de si mesma? Muda com frequência palavras ou o tipo de linguagem?
O ponto decisivo para mim é chegar, partindo de absolutamente nada, a um esboço denso, caótico. O trabalho em cima do esboço é extenuante. Gasto muita energia para obter um texto com um início, um fim e repleto de vitalidade. É uma aproximação lenta, como à espreita de uma forma de vida sem uma fisionomia definida. Posso avançar sem parar, às vezes, até mesmo sem nunca reler, mas é raro. Geralmente avanço poucas linhas a cada dia, compondo-as e recompondo-as. Muitas vezes, perco o interesse e ponho tudo de lado. Mas esse é um caso muito sofrido e prefiro não abordá-lo aqui. Quero dizer, cara Ann, que, somente quando esse esforço preliminar teve um bom resultado, começa para mim o verdadeiro prazer de escrever. Recomeço desde o início. Apago trechos inteiros, reescrevo muito, mudo o percurso e até mesmo a natureza dos personagens, acrescento trechos que me ocorrem e me parecem necessários só naquele momento, quando já existe um texto, desenvolvo episódios que haviam sido apenas mencionados, modifico a posição de alguns acontecimentos, muitas vezes recupero páginas descartadas, primeiras versões mais longas, talvez mais feias, porém mais imediatas. É um trabalho que faço sozinha, não o dividiria com ninguém. Em contrapartida, a certa altura, preciso de leitores muito atentos, mas que devem prestar atenção somente nas minhas distrações: cronologia errada, repetições, formulações incompreensíveis. Mas tenho medo das sugestões que tendem a normalizar o texto, do tipo: não é assim que se diz, está faltando pontuação, essa palavra não existe, é uma formulação imprópria, é uma solução antipática, assim fica mais bonito. Mais bonito? A edição perigosa é a que zela pelo respeito do cânone estético vigente e também a que favorece anomalias compatíveis com o gosto difuso. Se um editor diz “no seu texto há coisas boas, mas precisamos trabalhar nisso”, é melhor retirar o manuscrito. Aquela primeira pessoa do plural é alarmante.