Carla Aranha, Fabiane Stefano, Rodrigo Caetano
Exame/Ideia
O ano de 2020 acentuou o peso mastodôntico do Estado brasileiro na economia e na vida dos cidadãos. Metade da economia do país é impulsionada pelo setor público, seja pelos gastos diretos do governo, seja pela alta participação das empresas estatais no PIB. Cerca de 75% da população depende exclusivamente do atendimento do Sistema Único de Saúde. Oito em cada dez crianças e jovens estudam em escolas públicas.
Com a pandemia, mais da metade da população brasileira passou a viver em domicílios contemplados pelo auxílio emergencial de 600 ou 1.200 reais ao mês. Como resultado direto do auxílio, o presidente Jair Bolsonaro, eleito com uma cartilha liberal, bate recordes de aprovação.
DÚVIDA CRUEL – Afinal, os brasileiros que elegeram um projeto de Estado enxuto se arrependeram? Ou a pandemia mostrou que, no Brasil, o povo pode até ser de direita nos costumes, mas é vermelho na economia? Afinal, que Brasil o brasileiro quer? E mais importante: de que Brasil o Brasil precisa?
Uma pesquisa Exame/Ideia, projeto que une Exame Research, braço de análise de investimentos da Exame, e o Ideia, instituto de pesquisa especializado em opinião pública, fez uma profunda radiografia sobre o que desejam e pensam os brasileiros. Foram ouvidas 1.235 pessoas, por telefone, em todas as regiões do país, de 24 a 31 de agosto, o que gerou mais de 5.000 cruzamentos de dados. O levantamento mostra um forte apego do cidadão à ideia do Estado paizão, aquele que banca tudo.
“O brasileiro quer pagar menos impostos, mas quer ter serviços públicos melhores e programas sociais mais abrangentes”, diz Maurício Moura, fundador do IDEIA e professor na Universidade George Washington, nos Estados Unidos.
PROGRAMAS SOCIAIS – De acordo com a pesquisa, mais da metade dos brasileiros acredita que o governo deveria gastar mais em programas sociais. Nove entre dez acham que o auxílio emergencial deveria ser estendido — sendo que 53% das pessoas responderam que queriam que o valor integral fosse mantido (em vez da nova versão, de 300 reais ao mês).
O levantamento foi feito antes do anúncio da redução do benefício, no dia 1o de setembro, mas 48% das pessoas disseram que um corte no valor seria ruim, ainda que aceitável, uma vez que os efeitos da crise causada pela pandemia devem permanecer por mais tempo.
Para 23% dos entrevistados, a redução dos 600 reais é inaceitável.
PAPEL DO ESTADO – A discussão de qual papel o Estado deve desempenhar na vida dos cidadãos é antiga e se intensificou com a pandemia. O filósofo americano Francis Fukuyama escreveu o livro Ordem e Decadência Política, de 2014, que dá uma ampla gama de visões sobre o escopo adequado do Estado — desde a que defende que ele deveria fornecer somente os bens públicos mais básicos até a que a ele caberia também moldar ativamente a natureza da sociedade e se esforçar por uma redistribuição de renda significativa.
“Todas as democracias liberais se empenham em algum grau de redistribuição, mas a extensão da intervenção estatal varia muito entre as democracias sociais da Escandinávia e os Estados liberais clássicos, como os Estados Unidos”, escreve o autor.
VERSÃO BRASILEIRA – O Brasil acabou criando para si uma versão piorada de funcionamento do Estado: gigante no tamanho, caro para a sociedade e que entrega serviços de baixa qualidade ao cidadão.
“Em geral, apenas em países com estabilidade econômica e que têm um estoque de empregos capazes de proporcionar um crescimento econômico sustentável para a população, o debate sobre a redução do papel do Estado, principalmente em relação ao tamanho dos benefícios sociais, consegue prosperar”, diz o economista Samuel Pessôa, pesquisador da Fundação Getulio Vargas e sócio da consultoria Reliance.
VULNERABILIDADE – “Manter a estabilidade econômica Não parece ser o caso do Brasil neste momento, em que a pandemia tornou a população pobre ainda mais vulnerável”, assinala Samuel Pessôa.
Tudo isso colocou em xeque o projeto liberal vocalizado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e adotado com convicções titubeantes pelo presidente Jair Bolsonaro desde o início do mandato. Sim, as urgências da pandemia estão aí, mas elas se somam à resistência e aos anseios da população que existem há tempos.