Por Anna França
Doutora em microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP), Natalia Pasternak é uma cientista diferente. Especialista em genética molecular e pesquisadora do Instituto de Ciência Biomédicas da USP, ela decidiu deixar os laboratórios e os tubos de ensaios para apostar na divulgação de dados científicos, promovendo, assim, o que chama de políticas públicas baseadas na ciência. Para isso, faz palestras, participa de eventos, dá entrevistas e não poupa esforços para trazer conhecimento científico para o mundo dos leigos. Nessa trilha, ajudou a criar, em 2018, o Instituto Questão de Ciência (IQC), uma associação sem fins lucrativos, cujo objetivo é contribuir para aprofundar as discussões na área médica, na busca de soluções, inclusive, para o financiamento da pesquisa no País. Esse projeto se tornou ainda mais crucial após a chegada da pandemia de Covid-19. Em entrevista exclusiva à revista ISTOÉ, ela fala como acompanha uma das maiores crises sanitárias do planeta e os reflexos da condução atabalhoada da Saúde pelo governo federal e da abertura precoce da economia sem levar em conta comprovações técnicas.
Estamos vendo a reabertura de comércio e serviços em vários Estados. Ainda é cedo?
É precoce, principalmente sem os parâmetros necessários para se fazer isso de forma segura. Em um país onde nem se testa a população, não se faz rastreamento de contatos, não há garantias para a abertura. Hoje, só contamos com a boa vontade das pessoas para que fiquem em casa, usem máscaras e façam o distanciamento social. Fazer uma reabertura não é dizer que liberou geral. Por isso, muitas cidades tiveram de voltar atrás. Para reabrir, todos têm de entender que não pode ser um oba-oba.
Teremos uma segunda onda?
O País ainda nem saiu da primeira onda, como pode se dizer que entraremos em segunda? Nós estamos na primeira e subindo. Os números de casos e mortes não param de aumentar, e a realidade de sub-notificação é horrível. Manaus ou São Paulo até podem pensar em uma segunda onda. No resto do País não para de subir.
Vamos voltar a fechar?
Provavelmente vamos continuar abrindo e fechando, por tentativa e erro. O ideal seria o monitoramento com testagem. E não liberar para ver o que dá. Os casos sobem e tem que fechar de novo.
A falta de coordenação do Ministério da Saúde piorou a situação?
Sim, e muito. Temos sorte de ser uma federação e os governos dos Estados terem mais autonomia. Mas muita coisa depende do governo federal, como a distribuição de testes de diagnósticos e a importação de insumos para a realização de testes. É uma bagunça geral e os estados ficaram órfãos. Aí, cada um fez o que pode e agora decidiram reabrir por pressão de setores da economia. Mas, antes disso, víamos o esforço dos Estados, mesmo com a ausência ou mesmo diretrizes erradas do governo federal.
Nessa confusão a senhora acha que os médicos estão sendo pressionados a testar esses remédios milagrosos?
Não acho que os médicos estão testando. Dão os remédios mesmo sem comprovação científica porque eles têm certeza de que estão fazendo o melhor para seus pacientes, e que o remédio pode funcionar. Mas, essa certeza, eles tiram da cartola. O que preocupa é que vemos uma grande quantidade de médicos que não sabe como a ciência funciona.
Como assim?
Eles não sabem como são testados medicamentos para garantir sua segurança e eficácia. E, o pior, não enxergam as conseqüências do que o uso indiscriminado de certos remédios podem trazer. A cloroquina tem efeitos colaterais cardíacos, que não podem ser ignorados. Não é balinha de açúcar. No caso da ivermectina, se for usada como está na bula, não deve ter efeitos danosos. Dá à pessoa uma falsa noção de que ela está segura.
E isso é ruim?
Sim. E, o pior, é que o sistema público de saúde vai gastar um dinheiro que não tem para comprar um remédio sem indicação comprovada. Enquanto isso, faltam testes para diagnósticos, anestésicos para intubação, respiradores, ou até equipamentos de proteção individual. E o dinheiro público não pode ser tratado com esse desleixo.
Na gripe espanhola não havia tanta informação como hoje. Como ela ajuda no combate à pandemia?
Deveria ajudar. Mostrando o que funciona, como o uso de máscaras e o distanciamento, indicando o que deu certo nos outros países e o que não deu. Por outro lado, quando se mora em um país onde o presidente dissemina informação falsa, indo na contramão do resto do mundo, as pessoas ficam confusas. E essa desinformação caminha mais rápido do que a correta, porque é mais fácil repassar uma frase no Whatsapp sobre benefícios da cloroquina, do que repassar um estudo de mil palavras mostrando suas contraindicações.
Qual é a saída?
O equilíbrio é delicado. Ter informação errada é pior do que não ter. Os veículos sérios da mídia têm feito um bom trabalho, preocupados em passar informações corretas. A imprensa e a ciência estão sendo revalorizadas. Sou otimista. Nunca se falou tanto em ciência como agora. É claro que a publicação direta ao público das prévias de estudos, sem avaliação dos pares, pode desacreditar a ciência, como aconteceu no caso do estudo da cloroquina.
A falta de uma educação mais voltada as para ciências ajuda a piorar isso?
Sim, porque a ciência ensina a pensar de forma crítica e racional, independente da carreira que a pessoa vai seguir. E temos deixado de ensinar ciências nas escolas. Ensina-se como se fosse um prato feito e acabado, não como um processo. E se não pensar como um processo, não se levanta hipóteses. Passa-se a acreditar piamente somente em soluções milagrosas, sem questionamento.
Isso também afeta os médicos?
Temos diversos médicos que acreditam que estudos in vitro indicam eficiência. E eles não sabem porquê não são ensinados. Estamos formando técnicos e não médicos críticos.
Os testes de farmácia não funcionam?
Eles não servem para quase nada, porque só testam se há anticorpos. Não é teste de diagnóstico, como o RT-PCR, que é feito com o cotonete comprido, que pega a secreção do nariz da pessoa para avaliar se o vírus está ali. O teste da farmácia vai olhar pra traz e vai ver se a pessoa teve contato com o vírus e produziu anticorpos. Um exame negativo pode indicar que a pessoa não teve contato ou pode indicar que a pessoa está com o vírus, mas não produziu anticorpos. Ou pode gerar até resultados falsos, porque os testes são ruins. A taxa de erro é alta.
Para que servem então?
Poderiam servir para fazer o que chamamos de soroprevalência, estudo que estima como está o nível de anticorpos na população. Além disso, é preciso ver que anticorpos não estão sendo bons marcadores para Covid-19. Estudos mostram que não é todo mundo que produz anticorpo. E quem produz não tem garantia de que o anticorpo fica, porque depois de dois ou três meses pode baixar.
A senhora acredita que a vacina surgirá rapidamente?
Acredito sim. Nunca tivemos tantos grupos trabalhando juntos, como no caso da Covid-19. Várias técnicas são usadas e muitas já deram resultados. A questão é o quão protetora ela vai ser. As primeiras podem não ser tão boas, mas é uma questão de tempo para se chegar a um bom produto. Já temos vacinas em fase três de teste, como a de Oxford e a Sinovac. Até o final deste ano, ou no início de 2021, teremos alguma delas aprovada.
O governo federal tentou esconder os números. A falta de transparência nos dados prejudica?
Muito. Porque os países que se deram melhor no combate à pandemia foram aqueles que se comunicaram direito com a população. Transparência e honestidade fazem com que as pessoas se sintam mais seguras e se engajem no combate, neste momento em que o enfrentamento da pandemia depende só do comportamento das pessoas.
Já se fala na imunização do rebanho. Em alguns lugares no Brasil já chegamos a esse grau?
A imunidade de rebanho é um termo vacinal e a gente usa para estimar qual é o percentual de pessoas que você precisa vacinar para que uma doença pare de circular e proteja aqueles que não podem ser vacinados. Esse termo foi emprestado para que os cientistas pudessem calcular o volume de infectados necessário para que a doença pare de circular e se torne manejável.
Qual é a diferença?
Quando você imuniza com vacina, há garantias de que a vacina foi testada e sabe-se que as pessoas ficarão imunes à doença sem ter de ficar doentes. Mas, nesse caso, sabemos que as pessoas estão sendo expostas sem controle algum e nem conhecimento do quanto cada um é suscetível.
Então, por que falam disso?
Porque são modelos utilizados pela comunidade científica para orientar políticas publicas. Não estamos nesse momento. Nem sabemos qual é o percentual da população necessário para que isso aconteça.
Isso pode aumentar o desespero das pessoas?
Sim, como acontece com os dados das pesquisas com cloroquina. No começo, nos ensaios in vitro mostraram algum resultado, mas depois as pesquisas mostraram que não funciona. Tudo isso ainda está sendo estudado.
Na epidemia da dengue foram usados agentes de saúde para levar informação à população. Isso não foi feito agora, por que?
Os agentes de saúde poderiam ter sido usados, até porque, por falta de dinheiro, a gente sabia que não se conseguiria testar ou rastrear doentes por celular, como em outros países. O treinamento de agentes de saúde, coisa que o SUS sempre fez bem, indo de porta em porta, poderia ser mais efetivo. É uma pena que não se tenha investido em soluções condizentes com a realidade brasileira.
Agora se fala na disseminação por aerossol? O que isso muda no combate ao vírus?
Isso confirma que o uso de máscaras é eficiente, porque a transmissão se dá mais pelas gotículas e as máscaras de pano ajudam. Mas isso só confirma o que eu falei, que a ciência não é uma coisa estática. Estamos aprendendo. Ela muda com o surgimento de novas evidências e é assim que a ciência se desenvolve.
Tivemos a Sars, mais fraca, e agora a Covid-19. Fala-se muito que novas epidemias virão. O que se aprendeu com isso?
Espero que a gente tenha aprendido que o investimento em ciência não pode ser feito em soluços. Precisa ser constante e continuo. Não pode ser reativo: há uma emergência, investirmos. Acaba-se a emergência, para tudo. São coisas que precisam ser contínuas. Para isso, é preciso que haja políticas públicas. E espero que esta seja a lição que a gente aprenda, para que surjam vacinas mais eficientes e se invista em antivirais genéricos.
Por que há tanta dificuldade de se tratar doenças virais se comparado às bacterianas?
Há diferenças básicas, especialmente na elaboração de remédios. É muito mais fácil fazer antibiótico para bactérias do que antivirais, porque bactérias são seres independentes, ou seja, não dependem de hospedeiros para se reproduzir, ao contrário do vírus que tem de infectar uma célula para conseguir se replicar. A própria natureza faz antibióticos naturais, porque bactérias competem entre si. Então tem um monte de maneiras de se matar a bactéria, sem afetar o organismo. Para fazer um antiviral, eu preciso ter cuidado para não matar as células do paciente e ser especifico para aquele vírus. Por isso, o antiviral da herpes só serve para herpes. O da gripe só serve para o vírus da gripe e assim sucessivamente. Mas já temos técnicas biotecnológicas modernas. Para termos isso, precisamos de investimentos. E temos que começar a investir agora, para termos resultados em dez anos.
Por que?
Porque a maior parte das doenças virais só foram controladas com vacinas. No caso da AIDS, ainda não se conseguiu a vacina, mas rubéola, sarampo, varíola, pólio só se controlou com vacinas. Porque é mais fácil fazer vacina do que antiviral. E a gente precisa começar a investir em vacinas que sejam mais rápidas de fazer, de terceira geração, que podem ser obtidas pela troca de uma sequência genética por outra, como foi feito em Oxford, que já tinha sequenciado a Mers. Por isso, eles estão tão adiantados.
É como a vacina da gripe?
Sim, as vacinas da gripe necessitam de investimento continuo para que se rastreie qualquer alteração do vírus, porque ele muda todo ano. O investimento precisa ser feito continuamente para evitar novas epidemias. É preciso que se invista em antivirais mais eficientes. No Brasil, nós não temos isso. Dengue é um exemplo. O Instituto Butantan poderia já ter uma vacina para dengue, mas falta investimento. A falta de investimentos robustos já vem de décadas.
Qual o risco se isso não for feito?
Nós vamos continuar reféns de insumos básicos para vacinas, medicamentos e tudo mais quando houver alguma emergência.
Falta investimento contínuo?
Sim, porque essas tecnologias são novas e levam tempo para dar resultado. Mas são estratégicas. E o investimento no Brasil só é publico. Falta o privado. As universidades sempre foram fechadas a esse conceito com medo de perder autonomia sobre a pesquisa. Enquanto em outros países, esse investimento é bem-vindo e já se sabe que não há perda de autonomia.
Qual a diferença entre investimento público e privado?
O financiamento público serve para gerar a pesquisa básica de investigação. Os avanços genéticos vieram delas, movidos pelo curiosidade de pesquisadores para saber mais sobre seqüenciamento. Mas a pesquisa aplicada, aquela que gera produtos e cria tecnologias, não é feita no Brasil. Temos condições de competir com ciência de ponta no Brasil. No caso das vacinas, hoje quase não temos autonomia para fabricação de insumos nem vacinas próprias. Apenas as vacinas da gripe e da febre amarela são produtos nacionais, do Instituto Butantan e da Bio-Manguinhos, mas haveria, no Brasil, condições de se fazer mais caso fossem feitos mais investimentos..
De que forma?
A filantropia no Brasil fica de fora da pesquisa. Os filantropos nem sabem que podem ajudar. A gente não tem, por exemplo, uma “Lei Rouanet” para ciência. E filantropos que gostariam de investir, não sabem nem como entrar no sistema. A pandemia abriu essa porta, que antes estava fechada. É a primeira vez que a USP tem uma plataforma para receber doações. Sendo que nas universidades norte-americanas, essa prática é superconhecida. Essa cultura de filantropia cientifica precisa ser criada no Brasil e nós do IQC estamos propondo isso, tornando o instituto uma espécie de curador desse investimento para que tenhamos apoio a bolsas de mestrado, projetos de vacina que precisam de financiamento privado. Essa porta precisa ser aberta no Brasil.