POR AFONSO BORGES – O Globo
Tenho outras sugestões para a Bienal de São Paulo que, no início deste ano, anunciou a frase/slogan “Faz Escuro Mas eu Canto”. Vamos lá: “No Meio do Caminho Tem Uma Pedra”; ou “Quem Sabe Faz a Hora não Espera Acontecer” ou “Apesar de Você, Amanhã há de ser Outro Dia”. Ou mais amenas, como “Mas que Seja Infinito Enquanto Dure”; “Sem Lenço, Sem Documento” ou “Louvando Quem bem Merece Deixo o Ruim de lado”. Mas bom mesmo seria uma palavra só: “Nonada”.
Posso também ser internacional e escolher frases, versos ou títulos de Bob Dylan, Cat Stevens, Woody Allen, Whalt Whitman, Lady Gaga, Michael Jackson, Beatles e até Freud. Todos citam Freud – por que a Bienal não poderia citar Freud? Ou melhor: Shakespeare. O bardo tem milhares de frases sensacionais.
Posso também recorrer aos esotéricos, aos espíritas, budistas, umbandistas e à turma da auto-ajuda – nossa! Aí, então, estantes lotadas de reflexões e pensamentos da profundidade de um pires.
Nada disso. A 34a, Bienal de São Paulo escolheu o título do livro e poema do escritor amazonense Thiago de Mello, 94, para ser vir de “mote”, ou “slogan”, ou “tema” – ou seja lá o que for: “Faz Escuro Mas eu Canto”. Mas o faz sem citar o nome do autor em nenhuma das peças publicitárias e promocionais do evento. Faz apenas um registro breve e truncado no final do home page.
Se o autor de “Os Estatutos do Homem” e “Poesia Comprometida com a Minha e a tua Vida” autorizou o uso, eu não sei. E nem vem ao caso, dado que, segundo o advogado Renato Dolabella, “a lei brasileira de direitos autorais determina que deve ser dado o crédito ao criador da obra. E isso deve ser observado em cada uso, mesmo os que tenham sido autorizados pelo titular ou por alguma permissão legal. O descumprimento pode gerar a obrigação de retificar a publicação, com o acréscimo do nome do autor, e ainda condenação de indenização por danos morais”.
Mas há inconsistências mais graves, na minha opinião. Definitivamente, o curador Jacopo Crivelli Visconti não leu o poema, não conhece o livro, não procurou saber o contexto no qual foi escrito (preso, em plena ditadura) e muito menos a trajetória do poeta nascido em Barreirinhas. Basta ler o texto de abertura, disposto no site da Bienal: “encarado mais como uma afirmação que como um tema, o título da 34ª Bienal de São Paulo, “Faz escuro mas eu canto”(…) reconhece o estado de angústia do mundo contemporâneo enquanto realça a possibilidade de existência da arte como um gesto de resiliência, esperança e comunicação”, completa.
Bem, na maionese escorregadia do “conceito” por ele elaborado acima, prefiro deixar ao entendimento do leitor a ligação do Tico com o Teco, na prova dos nove: leiam o poema, por favor, e tirem suas próprias conclusões.
Ao final, resta a dúvida: a escolha do excerto foi uma homenagem ao mais importante e longevo poema brasileiro da atualidade, Thiago de Mello, ou puro oportunismo? Se foi para o bem, como quero crer que sim, basta a Bienal de São Paulo fazer um gesto simples e ético: colocar, com ou sem parênteses, o crédito ao poeta amazonense abaixo do verso do poema de sua autoria, todas as vezes que for veiculada, como determina a Lei – e o bom senso.
Abaixo, o poema – e, após a leitura, conflitem com o texto do Curador da Bienal.
Faz escuro mas eu canto
Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem ver comigo, companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar
a cor do mundo mudar.
Já é madrugada,
vem o sol, quero alegria,
que é para esquecer o que eu sofria.
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração.
Vamos juntos, multidão,
trabalhar pela alegria,
amanhã é um novo dia.