Pieter Bruegel the Elder, Triumph of Death. |
Os registros históricos sobre pandemias no mundo crescem na medida que o Estado se consolida como ordenador da vida. Artigo do professor Rodrigo Toniol, publicado pelo Estado da Arte:
Uma pandemia não é feita apenas por um poderoso agente biológico contagioso que coloca a vida de milhões em risco. Pandemias também são resultado de leis, decretos, anúncios oficiais, entrevistas coletivas que pouco a pouco vão classificando e nomeando fatos anteriormente desconectados: um mercado de peixes no interior da China, pastores evangélicos sul coreanos, consumo de animais silvestres, uma partida de futebol na Itália, um turista brasileiro no Egito. Aparentemente aleatórios, esse conjunto de fatos vai adquirindo coerência na medida em que acionamos uma espécie de “língua franca da pandemia”: achatar a curva, Corona, lockdown, COVID, Wuhan, Organização Mundial da Saúde. A noção de que estamos diante de uma pandemia depende da capacidade de coordenação e ordenamento desse amplo conjunto de fenômenos. Destacar o aspecto de que pandemias estão relacionadas com a intensificação do comércio e das viagens intercontinentais que favorecem a disseminação viral pelo mundo nos ajuda a compreender a dinâmica epidemiológica, mas pode esvaziar outra dimensão igualmente relevante: a história das pandemias acompanha a história do Estado moderno.
Sem Estado, sem a instância que constrói a coerência e nomeia, não há pandemia. Isso não significa negar a realidade biológica devastadora do vírus, evidentemente. Tampouco embarcar em perigosas aventuras conspiracionistas. O que está em jogo é afirmar a complexidade de uma pandemia, que não depende apenas da circulação de um agente biológico, mas também de um ato de nomeação que modifica a natureza do fenômeno.
Os registros históricos sobre pandemias no mundo crescem na medida que o Estado se consolida como ordenador da vida. Anteriormente a isso, é evidente, havia fenômenos de mortalidade generalizada que hoje seriam reconhecidos como pandemias, mas nesse caso, o agente ordenador era outro, a Igreja. E assim, o que assolava o mundo não eram pandemias, mas sim pragas. A afinidade histórica entre Estado e pandemia testemunha o declínio da força da Igreja em nominar as pragas. À Igreja cabia a gestão moral da explicação das mortes pela praga; cabia a ela, dar coerência ao punitivismo divino justificando cada morte por atitudes desonradas do indivíduo ou de seu grupo.
As moralidades de uma pandemia não são as mesmas da peste, mas tanto uma quanto outra compartilham da noção perversa de que a atitude individual é o elemento explicativo chave para sobrevivência ou morte. É mais uma vez os dois lados da moeda da ideologia do individualismo agindo: a salvação depende da ação particular, assim como a responsabilidade pela morte é invariável.
Ocorre que se, por um lado, não há seletividade biológica por parte do vírus em uma pandemia, por outro, a distribuição dos riscos é desigual. A fantasia de um “vírus democrático”, como insistem alguns analistas, ou é sintoma de um desejo de que a natureza realize os princípios que vemos cada vez mais ameaçados. Ou então, é fruto da miopia que teima em não reconhecer que grupos sociais específicos serão submetidos a arcar desproporcionalmente com as consequências epidêmicas e com as decisões sobre circulação, atividades econômicas e atenção à saúde. O mapa da distribuição do COVID-19 no Rio de Janeiro já nos mostra isso de modo exemplar: tendo os primeiros casos ocorrido na zona sul e na Barra, a disseminação e explosão do contágio não se dá no asfalto, mas no morro. Lá onde não há possibilidade de isolamento, onde as condições sanitárias sempre foram precárias, onde o suporte médico não existe. É aqui que, mais uma vez, pandemia precisa ser pensada a partir de seu par, o Estado.
O que a modernidade trouxe para o Estado foi a possibilidade de uma transformação na sua forma de governo e gestão da vida. Já não se trata mais, como argumentou o filósofo Michel Foucault, do exercício de um poder soberano que determina a morte quando julga necessário, um poder que decide quando é preciso “fazer morrer e deixar viver”. Na modernidade, o Estado exerce a biopolítica, um tipo de soberania baseada na gestão da vida das populações, o poder que “faz viver e deixa morrer”. É com a crueza da biopolítica que nos depararemos nos próximos meses. Estaremos diante da evidência de uma situação em que mesmo uma possível vitória da tecnologia médica sobre o vírus, com a descoberta de uma vacina, por exemplo, não encerrará a batalha, mas continuará operando a partir das desigualdades colocadas desde agora.
Essa é a hora de ouvir e levar a sério os biólogos, médicos, enfermeiros e sanitaristas sobre a prevenção e cuidado com o vírus, mas também é o momento para retomar a produção de mais de um século das ciências sociais sobre epidemiologia, Estado e desigualdades. Como temos visto, os efeitos do Corona estão muito além de ser contagiado ou não. Pesquisas antropológicas nos ajudam a perceber como as epidemias nos afetaram ao longo da história e como o debate sobre as formas de reagir a ela sempre envolvem questões que extrapolam o agente biológico.