MARIA ISOLINA DE CASTRO SOARES ESCREVE TESE SOBRE “SOLEDAD NO RECIFE”

Em Soledad no Recife , do escritor Urariano Mota, o narrador, ao pensar no passado, vê quão idealistas eram os jovens revolucionários

“O romance Soledad no Recife (2009), de Urariano Mota, é uma obra de ficção com forte teor testemunhal, um relato pungente do assassinato de jovens militantes contrários ao regime ditatorial: Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luiz Ferreira de Souza, Soledad Barrett Viedma, Pauline Reichstul, José Manuel da Silva e Jarbas Pereira Marques.

Urariano Mota aborda dramas de pessoas com identidade civil e existência real, possibilitando ao leitor conhecer nova versão de fatos e novas personagens que deixam de ser anônimas e avultam como construtoras da história. A literatura preenche, então, as frestas que o discurso científico histórico não cobre…

A reapresentação de um evento histórico em Soledad no Recife mostra essa tentativa de “salvar o passado no presente”, de não deixar que o passado desapareça no esquecimento para que se possa contar uma outra história, numa perspectiva que se opõe à da historiografia oficial. É preciso lembrar-se “[…] daqueles que jazem por terra” (LÖWY, 2005, p. 73). Urariano Mota, em entrevista a Wellington Calasans, afirma que

“O princípio fundamental do escritor hoje é aquele mesmo grande princípio que moveu Tolstói na sua obra, o que é assumir o ponto de vista em favor dos desfavorecidos, a favor dos oprimidos, este é o maior desafio do escritor. Este é o maior obstáculo […] porque se ele segue rigorosamente este caminho, ele não pense que vai encontrar portas abertas. Na grande mídia, no mundo editorial, as portas não estão abertas pra essa visão de mundo [“…] (MOTA, 2016)

O compromisso com essa forma de fazer literatura é e sempre foi, segundo Urariano Mota (2016), o principal inimigo do escritor. É ter um compromisso com a verdade dos esquecidos da história, a verdade que incomoda aqueles que compactuam com o poder ou estão apenas preocupados em manter o status quo. Ao buscar um evento acontecido há 37 anos, Urariano Mota, pela ficção, revolve a história oficial, fazendo emergir dos escombros rastros18 que deixariam de existir não fosse esse trabalho de investigação do passado, não fosse feito, no presente, um apelo para que esse passado não seja esquecido. Essa atitude dos que agem como o materialista histórico visa também a tentar impedir que a barbárie se repita no presente….

Se não há como trazer o passado de volta, pode-se, pela memória, buscar no passado a compreensão do presente, tentar construir o depois a partir do antes. O narrador de Soledad no Recife vê-se na obrigação de fazer justiça aos mortos:

“Chegamos aqui ao mais difícil de escrever, de narrar, de contar. Com a mão na testa, ponho-me a refletir. A primeira frase que vem sem aviso é: passei 37 anos para entender e contar este momento. Mas quando isso me digo, sinto que deveria esperar mais 37 anos, se mais vida eu tivesse. Para não mergulhar no lusco-fusco, aurora ou escuridão de uma probabilidade, entro e começo com as poucas ferramentas que consegui ao longo destes anos. Mas invoco a paciência e a coragem dos que me leem, porque preciso de ajuda nesta difícil travessia” (MOTA, 2009, p. 101).

Inúmeras outras distorções que acontecem hoje também têm origem no período ditatorial. O narrador onisciente de Soledad no Recife flagra Daniel pensando:

“‘Isso passa. Calma, hombre. Terás a compreensão daqueles olhos verdes, claros e vivos de Fleury’. E sorri íntimo. […] O que lhe dói não é de modo nenhum – ‘Culpa zero, entende? Culpa zero’ -, não é bem doer, o que mais o incomoda é a incompreensão do mundo. […] ‘Se eu não me julgo um criminoso, eu não sou criminoso. O que vale é o que eu sei’” (MOTA, 2009, p. 84).

Prestes a trair os jovens socialistas, Daniel impõe a si mesmo calma. O momento crucial está chegando. Não há motivo para sentir-se culpado, o crime que está para cometer o incomoda apenas porque as pessoas podem não compreender o que o move, já que não considera a entrega dos jovens à truculência da ditadura um ato criminoso. Servindo a uma estrutura de repressão que contava com todo um aparato dos poderes públicos e de empresários, Daniel, já próximo a ser reconhecido como cabo Anselmo, tem o delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury (1933-1979), do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) como seu superior no evento da chácara São Bento…..

Em Soledad no Recife, Urariano Mota, já na voz do autor empírico, confessa que foi procurado por uma mulher que o instou a escrever outro livro sobre militantes assassinados: “Você hoje dorme pouco, mas vai dormir menos ainda […] porque os mortos, os perseguidos da ditadura pedem justiça, eles te acompanham”

O escritor opta, assim, por documentos oficiais para enfatizar o fato histórico. O efeito que Urariano Mota pretende é, possivelmente, dar um choque de realidade no leitor, que se vê, de repente, fora do ambiente ficcional e cara a cara com o trauma do real. Denunciados os opositores do regime, o terror começa para os jovens e Soledad reconhece que “[…] José Anselmo dos Santos se encontra entre os homens que lhe batem na cabeça com armas e punhos. […] Ele apenas assiste ao espancamento e suplício. Como uma prova de que é contra esses terroristas” (MOTA, 2009, p. 109). Em depoimento feito em 1996, na Secretaria de Justiça de Pernambuco, 26 anos após o ocorrido, a advogada Mércia Albuquerque declara: “[…] seis corpos se encontravam no necrotério […] em um barril estava Soledad Barret Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto” (MOTA, 2009, p. 109).

Os jovens foram assassinados, emudeceram, mas o eco de suas vozes permanece num apelo ao presente, apelo que Benjamin considera tarefa do materialista histórico atender. Na entrevista de Urariano Mota a Wellington Calasans, o escritor afirma que Soledad no Recife>

“[…] reabilita, retoma e recria a história de Soledad Barret, a mulher do cabo Anselmo, que ele entregou para a ditadura, que ele entregou para a morte. […] Os cínicos dizem que a literatura não serve para nada. Eu tenho a honra de dizer que Soledad no Recife pôs no curso do tempo, fez a atualização desse crime, do que eu considero um dos maiores crimes da ditadura brasileira, entende? pôs na ordem do dia. Por quê? Porque Soledad no Recife foi recriado recentemente para o teatro e plateias jovens têm visto essa recriação, sabe?, e dizem que eu não sabia que existia uma mulher de tal grandeza, eu não sabia que nós tínhamos heroína que foi assassinada aqui no Recife” (MOTA, 2016).

Ao retomar o passado, Urariano Mota desempenha um papel semelhante ao que Benjamin atribui ao materialista histórico, uma vez que a proposta do escritor é de reabilitar o passado, mostrar os acontecimentos de um ponto de vista que se contrapõe à história oficial e alertar o presente para os crimes a respeito dos quais a história oficial tem outra versão. Urariano é categórico: “[…] A gente não tem o direito de sucumbir. A gente não tem o direito de se deitar e morrer. A gente não pode morrer” (MOTA, 2016). Como o cronista benjaminiano, aqueles que têm um compromisso com a remissão dos mortos precisam narrar os acontecimentos, pois sabem que “[…] nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história” (BENJAMIN, 1994, p. 223). São esses eventos que, lampejando no presente, podem construir uma outra história, a história a contrapelo21 postulada por Walter Benjamin.

Em Soledad no Recife (2009), o narrador, ao pensar no passado, vê quão idealistas eram os jovens revolucionários:

“A distância, poderia ser dito que aqueles jovens estavam todos loucos em 1972. Todos, da mais ridícula alienação, da mais feroz angústia até o delírio suicida, em graus variados, todos estavam loucos. Mas isso, antes de ser uma condenação, é um reconhecimento de humanidades. Ou melhor, devo dizer, é o reconhecimento de que eles eram sensibilidades agudas e inteligências sufocadas” (MOTA, 2009, p. 43)………

Soledad no Recife inscreve-se na literatura brasileira contemporânea como ficção histórica, dado que é uma obra romanesca que revisita eventos históricos e traz uma versão que questiona a versão dos fatos oficiais. É, também, uma obra de forte teor testemunhal, cujos acontecimentos que constituem o enredo da obra são apresentados por um narrador em primeira pessoa que se coloca como participante dos fatos que se propõe a narrar, como já mencionado. Esse narrador desloca-se para o momento em que vê Soledad pela primeira vez, e então inicia sua narração, rememorando o passado.

A sensibilidade do narrador, possivelmente aguçada pela paixão pelo objeto proibido – Soledad –, dá-lhe visões expressionistas de Daniel, mas que, jovem e ingênuo nos idos de 1972, não entendia exatamente por que isso ocorria. Sentia que Daniel lhes roubava a luz, mas atribuía esse roubo ao fato de Soledad ser mulher de Daniel, a quem ela docilmente se sujeitava. Sentia também, em sua atração por Soledad, “[…] um irresistível chamamento para o abismo” (MOTA, 2009, p. 25).

O narrador confessa: “Escrevo este livro para falar da vida e – pretensão das pretensões – flagrar o movimento. Há uma contradição íntima, interna, já na primeira pretensão, que escrevo para falar da vida, e bem sei que passarei pela morte” (MOTA, 2009, p. 37). A morte ronda os jovens idealistas naqueles dias sombrios do governo do general Emílio Garrastazu Médici. Confiantes nos ideais revolucionários, diversos grupos já faziam ou se preparavam para fazer oposição ao governo, na ilusão de que conseguiriam que o país retornasse à democracia.

Urariano Mota, ao escrever sobre a Chacina da Chácara São Bento, procura “[…] despertar no passado as centelhas da esperança […]” (BENJAMIN, 1994, p. 224) e age como um materialista histórico que, não conformado com a versão oficial dos fatos, procura reescrever a história para tentar fazer justiça aos mortos, além de alertar o presente para os crimes do passado.
Particularmente na questão da ditadura brasileira de 1964-1985, a lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, anistia não só os que lutaram pelo retorno à democracia, mas os crimes conexos, ou seja, aqueles praticados pelos militares ou civis coniventes com o sistema, em sessões de tortura e morte com desaparecimento dos corpos, mesmo que se inscrevessem em crimes contra a humanidade29 .

O autor confessa: “[…] Almas de militantes assassinados exigiam que eu escrevesse o próximo livro, sob pena de que eu não teria sossego enquanto não o fizesse” (MOTA, 2009, p 115)….

“Dói-me a cabeça, a consciência, não falar sobre cada um desses jovens, sobre a dignidade, sobre o sacrifício maldito e brutal de cada um deles. Por isso os nomeio e registro, para grafá-los e gravá-los não em mármore, mas em palavras: Pauline, José, Soledad, Eudaldo, Jarbas, Evaldo”.

Fonte:Facebook

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