Distribuidoras querem ser remuneradas pelo uso da rede. Produtores alegam que medida pode inviabilizar o negócio
Uma das energias mais limpas do país está em risco antes de deslanchar. Produção energética que mais cresce no Brasil, com expansão de 150% entre 2018 e 2019, a Geração Distribuída (GD) está no meio de uma polêmica por conta da revisão de uma norma que pode retirar os subsídios do setor. Conectada diretamente à rede de distribuição, a GD avança, sobretudo, por meio da energia solar fotovoltaica. Desde 2012, a Resolução Normativa (REN) nº 482 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) garante o sistema de compensação, quando a energia excedente gerada por um consumidor pode ser injetada na rede e abatida do consumo mensal. A regulação, no entanto, será modificada até junho de 2020 e está em consulta pública até 30 dezembro.
A mudança gerou gritaria por parte da cadeia de energia solar, que hoje é isenta de encargos e de impostos pelo uso do fio — e passará a pagar. O governo e as concessionárias, responsáveis pela rede de distribuição, dizem que esse custo é repassado para os consumidores que não geram energia. A Aneel e o Ministério da Economia alegam que o setor não precisa mais de subsídio, cujo custo para os brasileiros pode chegar a R$ 54 bilhões em 2030. O setor argumenta que, com a taxação, os investimentos serão inviabilizados, pois o payback (retorno do investimento) ocorrerá em 26 anos, período superior à vida útil dos equipamentos fotovoltaicos.
Para Rebecca Maduro, sócia da área de energia do L.O. Baptista Advogados, a insegurança em relação à regra é o pior dos mundos. “Tira a previsibilidade do setor”, diz. No entanto, alerta que a REN previa uma revisão até 2019. “Não foi surpresa para o mercado. A Aneel tem que planejar o setor, respaldar o futuro. E ouviu os grupos de interesse”, ressalta. O lado ruim, argumenta, foi que o órgão regulador voltou atrás. “Havia um prazo que foi alterado. Hoje não se sabe qual é.”
Ganhos x custos
A audiência pública se encerra no fim do ano e mais de mil contribuições são contabilizadas. A Aneel promete avaliar tudo no primeiro semestre de 2020 e decidir em meados de junho. “O assunto foi desvirtuado. Um lado presta desserviço para a população com um discurso populista de que haverá taxação do Sol. Do outro, quando se fala na projeção do custo, também não se sabe quais as premissas levadas em conta”, avalia Rebecca.
Segundo Carlos Alberto Calixto Mattar, superintendente de Regulação dos Serviços de Distribuição da Aneel, a proposta é de que os consumidores que produzem energia solar paguem pela utilização da rede de distribuição “na exata medida do seu uso”. “Se nada for feito, em 2021, os que geram energia solar vão deixar para os demais uma conta a pagar de R$ 1 bilhão”, afirma. O custo é crescente .
Rodrigo Sauaia, presidente da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), sustenta que a GD proporciona mais ganhos do que custos. “Os benefícios são elétricos, econômicos, sociais e ambientais. Todo mundo ganha com a água economizada, com a termelétrica que não é acionada, sem perdas e com alívio nas redes. Evita investimento em novas linhas de transmissão, é energia limpa e sustentável”, enumera.
Sauaia defende que há momento certo para fazer a alteração e para decidir quanto cobrar. “São mais de 84 milhões de consumidores no país e apenas 63 mil geram ou são atendidos por sistema remoto quando não têm telhado. Estamos estudando mudar a regra com menos de 100 mil produtores no Brasil. Não é o momento”, alega. Segundo ele, a Aneel tinha um compromisso com o setor de que manteria a regra vigente por 25 anos, para os pioneiros que investiram, e, agora, a mudança deve ocorrer em 10 anos. “Os empresários que investiram fizeram contratos de 25 anos”, explica.
No entender de Tássio Barboza Oliveira, da Associação Baiana de Energia Solar, a Aneel mudou o discurso. “Estudo feito pela agência, em junho de 2011, aponta que a GD não seria onerosa para ninguém. De repente, surgiu um custo bilionário. Em agosto de 2019, a Aneel dizia que a tarifa baixaria com GD. Em outubro, o discurso foi outro. O que mudou?”, questiona. O especialista destaca que foi lobby das concessionárias. “A distribuidora está com medo do efeito Uber. Querem tapar o Sol com uma canetada”, critica.
O presidente da Associação Brasileira das Distribuidoras de Energia Elétrica (Abradee), Marcos Madureira, rechaça a ideia. “Lobby faz quem está ganhando dinheiro com subsídio, que custou R$ 850 milhões em 2019”, sustenta. Madureira admite que, a longo prazo, a GD pode reduzir a receita da distribuidora, mas, agora, o custo recai para os consumidores, porque vai parar na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE, que inclui a maior parte dos encargos do setor elétrico), rateada entre todos. “O subsídio era necessário no início, para incentivar uma tecnologia, que, naquela época, tinha equipamentos caros. O custo caiu 75% de lá para cá, com potencial para diminuir mais 30%”, afirma. A Abradee não é contra a GD, acrescenta. “Mas o sistema não funciona sem a rede. Se precisasse investir nisso, o custo seria sete a 10 vezes maior. Aí, sim, inviabilizaria completamente.”
Potencial
A GD veio para ficar, de uma forma crescente, na participação na matriz elétrica, aponta Cláudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil. “A primeira evidência é a forma acelerada com que se desenvolveu no Brasil, apoiada sobretudo pela geração solar fotovoltaica”, avalia. A perspectiva de longo prazo mostra que, até 2040 ou 2050, a GD possa ter participação maior do que a hídrica no país.
“O foco da polêmica é a revisão da norma, feita para que o setor saísse do zero, com compensação energética, um subsídio dado por todos os consumidores. Foi mérito da Aneel, como também é levar adiante a consulta pública, para analisar se, daqui para frente, o subsídio deve ser mantido”, opina Sales. Ele alerta para o que considera “uma guerrilha de comunicação com argumentos falaciosos”. “Dizer que vai taxar o sol é errado. Não é taxa, é subsídio, com custo que pode chegar a R$ 54 bilhões na conta de luz. Está evidente que não faz mais sentido mantê-lo”, destaca.
Paulo Pedrosa, presidente da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia Elétrica (Abrace), lamenta o fenômeno brasileiro de “ter energia barata, com conta cara”. Segundo ele, o acontece é que a riqueza é capturada por alguns segmentos. “Se perde nas reservas de mercado, nos subsídios, nos tributos”, alerta.
O professor da Universidade da Califórnia Rodrigo Ribeiro Antunes Pinto compara o sistema no Brasil com o estado norte-americano. “Na Califórnia, são 40 milhões de habitantes e geração de 80,3 gigawatts (GW), dos quais 13%, ou 10,7GW, são provenientes da fonte solar. No Brasil, são 210 milhões de habitantes, geração de 157 GW e apenas 0,6% solar”, diz. “O que a Aneel propõe é usar uma taxação que só ocorre em locais com contribuição muito maior da energia solar. A Califórnia produz 10 vezes mais do que todo o Brasil, tem 60 vezes mais painéis por habitante. Deveria estar desesperada para acabar com isso. Mas o estado subsidia 30% o setor, o direito de troca de energia é de 1 para 1 (da produzida pela consumida) e esses termos são garantidos por 20 anos”, afirma. “Tem alguma coisa muito errada ocorrendo no Brasil”, conclui.
Debate de alta voltagem
Em entrevista recente à plataforma colaborativa de inteligência em energia da Comerc, o diretor-geral da Aneel, André Pepitone, sinaliza a possibilidade de flexibilizar a proposta atual da agência sobre a REN 482. Uma possível alteração seria ampliar, de 10 para 25 anos, o tempo de vigência da regra atual para aqueles que já possuírem sistemas de geração distribuída. Outra ideia seria implementar uma transação gradual das mudanças, e não de uma só vez. “As novas regras podem valer apenas em janeiro de 2021”, afirma.