Por Guillermo D Olmo, correspondente na Venezuela
A Venezuela, pelo menos por enquanto, não é a Bolívia.
A oposição venezuelana, liderada por Juan Guaidó, voltou a protestar neste sábado (16) em diferentes lugares do país contra o governo do “usurpador” Nicolás Maduro.
A marcha convocada em Caracas, na qual Guaidó repetiu sua tentativa de formar mobilização popular suficiente para derrubar Maduro, terminou em frente à Embaixada da Bolívia, onde o dirigente da oposição e o pequeno grupo de seguidores que o acompanhou até ali cantaram o hino nacional.
‘A marcha de oposição convocada por Juan Guaidó culiminou em frente à Embaixada da Bolívia em Caracas’
A escolha do ponto final da concentração não foi por acaso.
A oposição venezuelana esperava que a renúncia de Evo Morales como presidente da Bolívia e sua saída do país em meio às acusações de fraude eleitoral e pressões da cúpula militar animassem seus seguidores a ir de novo às ruas contra Maduro, como aconteceu nos primeiros meses do ano. Na época, Guaidó se declarou presidente interino e foi reconhecido como tal pelos Estados Unidos e pela maioria dos países da União Europeia e da América Latina.
Mas os protestos deste sábado, como outros convocados ultimamente, estiveram longe de serem grandes, e a permanência de Maduro no poder não parece tão ameaçada quanto antes.
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Os venezuelanos, que fizeram grandes manifestações e tiveram semanas de choques entre detratores do governo e suas forças de segurança em 2013, 2014 e 2017, se abstêm agora de participar de protestos políticos, uma atitude que contrasta com a tensão crescente em outros países da região.
A queda de Evo Morales na Bolívia se soma às semanas de contestação que o governo de Sebastián Piñera enfrenta no Chile e a uma iminente greve nacional na Colômbia.
Antes disso, o presidente do Equador, Lenín Moreno, teve que voltar atrás quanto à retirada de um subsídio à gasolina que havia anunciado diante da resposta que encontrou das ruas.
Nesta semana, um grupo ligado a Guaidó invadiu a Embaixada da Venezuela em Brasília, pouco antes do início da Cúpula dos Brics.
Mas, embora a Venezuela continue tendo com frequência pequenos protestos pela falta de água, gás ou gasolina, as grandes mobilizações deixaram de ser a tônica.
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Negociações por paz
Sabana Grande, no centro de Caracas, era uma das regiões por onde o protesto de oposição convocado por Guaidó deveria ter passado.
Uma de suas partidárias, a professora aposentada Zuleyma Castro, explica porque acredita que cada vez menos gente vai aos protestos.
“Os meses que foram gastos para negociar com o governo tiraram a força da mobilização”, diz, na entrada de um centro comerical na qual há muito mais policiais que manifestantes.
‘As pesquisas revelam uma queda na credibilidade de Guaidó’
A oposição venezuelana havia interrompido a convocação de protestos quando houve uma negociação do governo, com mediação da Noruega.
O processo fracassou, igual o celebrado na República Dominicana entre 2017 e 2018, reforçando os argumentos dos setores da ala mais dura da oposição, encabeçados por María Corina Machado e seu partido Vente Venezuela, que rechaçam qualquer negociação com o governo.
Marielena Martínez, outra cidadã que iria se manifestar na região de Chacaíto, diz acreditar que o diálogo falho aflorou “divisões na oposição”.
Por que a liderança de Guaidó é questionada
Guaidó voltou a prometer este sábado que vai “manter os protestos até conseguir a liberdade”.
Castro, a senhora que lhe apoia, diz continuar acreditando na liderança do dirigente. “Quem vamos colocar em seu lugar?”, ela pergunta.
Mas centros de pesquisas, como o Delphos, já detectam uma queda em sua credibilidade com a população.
Seu rival Maduro tampouco sai favorecido nas sondagens e nas marchas pró-governo. Muitos dos que frequentam os protestos costumam ser funcionários públicos ou pensionistas que recebem alguma compensação.
‘Nas marchas chavistas também há menos gente’
A desmobilização afeta os dois grupos.
Robinson Paternina foi a duas marchas convocadas por Guaidó no começo do ano, mas neste sábado a BBC Mundo o encontrou fazendo fila em uma loja de bebidas na região de Bello Monte. “Antes havia um rio de pessoas nas marchas, mas agora já não há, porque não há líderes”, ele diz.
No começo do ano, Guaidó atacou o chavismo com ações de impacto, como a tentativa da entrada da chamada “ajuda humanitária” no dia 23 de fevereiro ou o levante militar frustrado de 30 de abril. Agora, ele diz que “não há data mágica”.
Mas o país tem uma história cheia de golpes militares e caudilhos que o governaram de maneira autoritária, o que dificulta transmitir essa mensagem nas ruas.
Paternina pede dirigentes que “façam o que tiverem que fazer, que digam que vamos matá-los ou que nos matem”.
“Como na Bolívia”, conclui.
Influência da política internacional
Nestes dias, as alusões à Bolívia são frequentes.
Na hora em que Guaidó encerrava sua marcha em frente à Embaixada boliviana, os seguidores do governo escutavam na outra ponta da cidade a Diosdado Cabello, um dos mais poderososo dirigentes chavistas, clamar contra “o golpe de Estado” que derrubou Evo Morales.
‘O governo da Venezuela convocou a uma marcha de apoio a Evo Morales para o mesmo dia que Guaidó chamou a oposição venezuelana para as ruas’
Protestos da oposição e contra-protestos do governo são uma constante na história recente da Venezuela.
Mas há cada vez menos gente nelas.
Josefina, hoje aposentada do setor de turismo, era assídua nas concentrações do chavismo. Ela perdeu esse costume.
“A gente marcha e marcha e no final tudo fica igual”, conta, enquanto procura a barraca de frutas com o melhor preço em um mercado da avenida Baralt, não tão distante do Palácio de Miraflores. Ela, como tantos outros, se queixa de quão dura a vida no país ficou, golpeado por uma grave crise econômica.
O efeito de contágio da Bolívia por qual a oposição esperava não se produziu, ao menos por enquanto.
Se Morales renunciou quando o alto comando militar e policial de seu país pressionaram para que o fizesse, na Venezuela, salvo esporádicas deserções, as Forças Armadas continuam do lado do governo.
Geoff Ramsey, analista do centro de análise Washington Office of Latin America, observa que “Maduro construiu muitos laços com os militares e mostrou muito mais habilidade para controlá-los que Morales”.
A não concretização das ameaças dos Estados Unidos contra Nicolás Maduro foi outra das razões que desinflaram a oposição.
‘Evo Morales renunciou quando perdeu o apoio do alto comando militar na Bolívia’
Washington repitiu muitas vezes que “todas as opções estão sobre a mesa” para derrubar Maduro, o que pareceu abrir a porta para uma intervenção militar na Venezuela.
Mas o passar dos meses deixou claro que o governo de Donald Trump não vai ir além da imposição de sanções e da pressão diplomática contra o mandatário chavista.
Embora tenha agravado seus problemas econômicos e dificultado ainda mais a vida da população, nada disso serviu para derrubar o governo.
Como a repressão e a crise impactam a população
Na noite anterior à mobilização convocada para este sábado, encapuzados com grandes armas irromperam em um escritório do partido de Guaidó em Caracas. Segundo quem estavam ali, apontaram armas aos presentes, roubaram seus pertences e causaram danos.
Foi o último exemplo da intimidação e violência que sofrem com frequência os seguidores da oposição.
Quando em fevereiro Guaidó mobilizou seus seguidores até a fronteira com a Colômbia para apoiar a entrada dos insumos doados por aliados internacionais, grupos motorizados armados dispararam na região onde estavam ativistas, sem que a Guarda Nacional, amplamente espalhada ali, fizesse algo para impedir.
Um informe da alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, reportou múltiplos casos de uso excessivo da força contra os manifestantes por parte das forças de segurança.
Em uma visita a Caracas, Bachelet disse também que os seguidores do governo haviam sido objeto de agressões nos protestos..
O perigo intrínseco de se manifestar também contribuiu para dissuadir muitos de participarem.
“Com as marchas não se ganha nada, e além disso se expõe a socos”, diz Josefina, que prefere não ter o sobrenome divulgado.
São muitos os venezuelanos que, nesses duros momentos, veem outras batalhas como prioridade.
“Antes eu podia me permitir, mas agora não posso perder um dia de trabalho para ir a um protesto”, comenta Robinson Paternina.
Josefina concorda: “Minha marcha todos os dias é para encontrar água e gás, que não chegam na minha casa. Não posso perder tempo com outras coisas.”
BBC Brasil