Solto por benemerência dos compadritos do STF, o condenado sobe no palanque para atropelar lei eleitoral denunciando sem provas autoridades legítimas por crimes de que elas não são acusadas, aponta José Nêumanne. Em qualquer país onde o Estado de Direito funciona de fato, ele já teria sido recolhido novamente.
Por José Nêumanne*
No primeiro fim de semana após ter sido liberado para circular entre pessoas decentes, o que lhe é vedado pela legislação penal por condenação em três graus por um juiz, três desembargadores e cinco ministros do Superior Tribunal de Justiça (9 a 0), Lula acusou autoridades do Estado de Direito que o sentenciaram de crimes gravíssimos, pelos quais nenhuma delas foi acusada. No Largo do Carmo, no centro do Recife, capital do Estado onde nasceu, Pernambuco, ele disse: “A quadrilha neste país foi montada por Moro, Bolsonaro, por aqueles que me julgaram”. No exato momento em que as caluniava sem prova nenhuma, em mais um sinal de desprezo pelas instituições do Estado de Direito, que despreza, o presidente da República e o ministro da Justiça não protagonizavam nenhum episódio que os relacionasse com as acusações que ele fez.
Como diria Jack, o Estripador, vamos por partes. Em 2005 o mesmo ex-presidiário foi sujeito oculto de um processo que galvanizou o Brasil no Supremo Tribunal Federal (STF). Sob o relator Joaquim Barbosa e o revisor Ricardo Lewandowski, que depois assumiriam, um após o outro, a presidência do nada “excelso pretório”, foi processado, julgado e condenado um esquema de compra de votos, feito por ele no primeiro mandato, com propinas para partidos pequenos. Era, então, presidente da República e o maior beneficiário do crime. Mas sua participação foi escamoteada pela omissão do relator, petista de carteirinha, e cumplicidade do revisor, que de protegido virou protetor. Dentro dos antigos padrões de impunidade nacional, os operadores da rapina egressos da iniciativa privada foram apenados. Mas os agentes políticos do Partido dos Trabalhadores (PT) foram indultados pelo poste que lhe sucedeu, Dilma Rousseff, e perdoados pela soit-disant Suprema Corte. As exceções foram José Dirceu e Pedro Corrêa, pela causa incrível de que delinquiram quando cumpriam pena na Papuda. Hoje o único condenado que permanece encarcerado é Marcos Valério, sem mandato nem fortuna pessoal para lhe abrir a chave da cadeia.
Daí para cá o petrolão substituiu o mensalão nas discussões de rua, em que não se fala mais na escalação do time do coração, mas se discute qual dos 11 ministros da mais alta instância judicial tem no órgão de percussão mais manteiga para seus padrinhos e mais aço inoxidável para o desprotegido cidadão sem poder. Desta vez, os mandantes e praticantes do maior assalto ao pecúlio público da História não tiveram como se safar da memória dos delatores premiados e caíram um a um. O mais rico empreiteiro, Marcelo Odebrecht, e o político mais popular, protagonista deste texto, não escaparam da privação de liberdade.
Os autores do feito espetacular, que mandou para o lixo da História os antes tidos como intocáveis, tornaram-se heróis da massa, que ministros do STF Gilmar Mendes, nomeado pelo tucano Fernando Henrique, e Marco Aurélio Mello, pelo amado primo Collor, desprezam do fundo da alma. É o caso especial do ex-juiz Sergio Moro, que encarcerou mandachuvas e operadores com o breve funcionamento do princípio fundamental segundo o qual todos os cidadãos desta República imperfeita são iguais perante a lei.
Agora a roda da História deu uma guinada de 180 graus para trás desde o impulso dado pelo citado Gilmar Mendes, que, diante da descoberta de que seus protegidos do PSDB fizeram oposição de fancaria em troca de propinas, virou a casaca com a velocidade de um raio. A entrada da patota de Sorbonne, Oxford e Harvard na lixeira devassada pela Operação Lava Jato, do procurador Deltan Dallagnol, do Ministério Público Federal do Paraná, era algo que podia ser previsto por qualquer Tirésias, ou seja, algum cego que enxergasse mais do que os mortais videntes. Afinal de contas, o mensalão não nasceu à sombra do ABC dos automóveis, mas nas ágoras do socialismo de câmpus da USP e congêneres. O primeiro patrão de Marcos Valério não foi o tosco filho de um estivador analfabeto, mas o herdeiro de uma linhagem de políticos tidos como os mais hábeis do País, os pessedistas das Alterosas. E não foi à toa que, junto com Lula e Dirceu, Eduardo Azeredo também foi solto, não de um cárcere comum, mas de um quartel de bombeiros heróis, cômoda privação de liberdade, igual à do petista em sala de estado-maior na Polícia Federal.
Num fim de semana dominado pela nostalgia do golpe militar, dado por um marechal enfermo guiado por seu cavalo, e pela estropiada lembrança de um playboy de Alagoas, mesmo Estado natal dos primeiros interventores republicanos, quis a deusa da História, Clio, com sua ironia de hábito, intervir. E foi precisamente um primo de Fernando Collor de Mello, Marco Aurélio Mello, quem previu convulsões sociais insuportáveis com a eventual prisão do gatuno-rei. Mas Lula foi preso e solto e nada se registrou que merecesse comoção nas ruas de Curitiba, de onde saiu da gaiola, e São Bernardo do Campo, para onde foi. Punhados de meia dúzia de gatos-pingados compareceram para ovacioná-lo. Ele não perdeu a oportunosa ensancha de criticar de forma indireta os companheiros que não promoveram a mudança de condição que ele julgava merecer com um beija-mão à altura de suas votações de antanho. “Estou vendo que nós estamos com dificuldade de reagir”. A quem cobra uma autocrítica à altura do tamanho do rombo provocado no erário por seus nove dedos, a frase pode ter frustrado. Mas quem o conhece bem sabe ser comum ele não perder ocasião de transferir a própria culpa no fiasco dele mesmo para os adoradores que não promoveram a aclamação que esperava. Resta constatar que foi mais do que se podia esperar de um “encantador de serpentes” (apud Ciro Gomes), que sabe que até estas escasseiam nesta crise horrível.
A Nação não chorou nem esperneou com a prisão do falso Mandela do agreste. Não teria por que antecipar o carnaval em Salvador e Olinda para festejar sua volta ao lar, ao lado de uma prometida, oportunisticamente pendurada num cabide binacional em Itaipu. Quem comemora contando com a esperança de dar a volta por cima nas urnas não terá muito tempo para esperar. Em um ano, viúvas das mamatas contam com o inesperado total. As boas notícias da economia prenunciam mais uma temporada de vacas magras para as vivandeiras das calçadas habitadas por desempregados. A onda antipetista – que elegeu presidente um capitão reformado afastado da campanha por uma facada mortal, que não teve o sucesso esperado – continua revolta. E ela será mais uma vez flagrada nas ruas e, sobretudo, em logradouros públicos e aviões de carreira, aos quais os beneficiários do assalto geral do erário não se aventuram enquanto tiverem à disposição transporte aéreo gratuito, pago pelo povo. A turminha da carona não parece disposta a enxergar a realidade que a apavora.
Fernando Henrique vive à espera de que o aliado de sempre, exposto ou às ocultas, lhe acene do outro lado da rua. E vai continuar esperando. Na mais recente entrevista à mídia amiga, ele disse não ver em Bolsonaro nem em Lula capacidade de apaziguar a tensão política brasileira. Bidu! Ainda espera que o petista não volte “com fundamentalismos”. Valha-nos Deus! Alguma alma caridosa precisa lhe contar que a autocrítica que falta ao PT nunca foi o forte do PSDB. Quando impediu que seu partido, ainda vigoroso, liderasse o impeachment do ex-presidiário à época, adequada para isso, do mensalão, o homem-sigla sabia que o tucanato inventara o mensalão, e Eduardo Azeredo não foi expulso do partido que se pretende dono do centro, que afundou. Aécio Neves pegou bola para comandar a adesão camuflada em oposição e livrou o filho do aliado do avô Tancredo da expulsão, mantendo-se, como FHC, impávido colosso do pleno cinismo.
Pelo visto, o ex-presidiário nunca mais voltará à cadeia, como previu o colunista Magno Martins em blog na Folha de Pernambuco. Não por uma boa, mas pela pior das razões. Esperança do centro fernandenriquista para pôr fim à polarização, da qual foi expulso por falta de pudor, Luciano Huck imagina tornar-se opção à ainda imbatível polarização de Lula-Dirceu contra Bolsonaro-Moro. E escondeu-se na floresta incendiada em que Aecinho foge da vida real. Huck não entendeu que, ainda que seja lícita, a compra de um jatinho financiado pelo bolso do desempregado é pavio curto em campanha política. Nem percebeu que o aluguel do jatinho da empresa dele e da mulher, Angélica, que entrou no noticiário político pelo hangar improvável do messianismo (“ele sente-se chamado” é sensacional, não é mesmo?), não é imoral por ter transportado o ex-presidiário. Mas porque foi pago pelo sangue e pelo suor do pagador de impostos nesta pátria de impostores, que ele quer chefiar. Simples assim. E fatal, babies.
*Jornalista, poeta e escritor