Vencedor do Prêmio Camões, escritor angolano cria história com seita apocalíptica e pessoas que desaparecem: ‘Pode acontecer, não?’, ele questiona
“O quase fim do mundo” se passa em Calpe, uma cidade africana imaginária que aparece em outros romances de Pepetela. Depois de um trovão seco, o médico Simba Uloko descobre que todo mundo desapareceu, deixando as roupas para trás. Ou melhor: quase todo mundo. Uloko encontra outros sobreviventes, como Dona Geny, fiel de uma seita cristã chamada Paladinos da Coroa Sagrada, talvez envolvida com o sumiço coletivo. Leia a seguir os melhores trechos da conversa dele com O GLOBO:
“O quase fim do mundo” foi publicado originalmente em 2008 e só agora chega ao Brasil. A situação ficou mais apocalíptica desde então?
O fim do mundo pode acontecer, não? Escrevi o livro antes do drama imenso dos refugiados na Europa. O Mar Mediterrâneo se transformou em um sepulcro. Os últimos anos me assustaram um pouco. Temo que se perca o controle sobre as armas nucleares. Nos tempos da Guerra Fria, havia só duas potências que se enfrentavam. Agora já não se sabe quais são as potências, quem vai apertar o botão. Antes, havia um equilíbrio mantido pelo medo. Hoje, há um desequilíbrio provocado pelo terror.
Uma das personagens do livro, Dona Geny, é membro de uma igreja chamada Paladinos da Coroa Sagrada, que tem algo a ver com o desaparecimento de quase toda a Humanidade. Como a religião foi parar no livro?
O que me despertou a ideia para esse livro foi o ataque com gás sarin no metrô de Tóquio, em 1995, quando uma seita apocalíptica quis limpar o mundo de certos pecadores. Eu vou arrumando coisas em um arquivo na minha cabeça e, quando não tenho mais ideia nenhuma, vou lá buscar uma. Agora estou sem ideia nenhuma. Pesquisei no arquivo e já usei tudo.
A literatura desempenhou um papel importante na luta pela independência angolana, ajudando a forjar uma identidade nacional. Hoje, quase 45 anos após a independência, qual a força da literatura em Angola?
A literatura angolana mudou muito, porque a problemática hoje é outra. Antes, havia o colonialismo, que toda a literatura, particularmente a poesia, estava a combater de forma mais ou menos clara. Depois da independência, apareceram livros como o meu “Mayombe”, escrito no meio da guerrilha. Era uma época de romantismo revolucionário e orgulho nacional. A literatura floresceu. Deve ter sido o melhor período da literatura angolana. Depois, decaiu. Hoje há mais escritores, mas pouca coisa nova. Começou-se a cair em temas que existem nas literaturas de todos os países: questões de amor, sentimentalismo, conflitos familiares. Há também temas atuais, como a violência doméstica. Mas, em geral, perdeu-se a dimensão política, que esteve presente na literatura angolana desde o século XIX, às vezes escondida porque não havia liberdade de expressão. Hoje a literatura não reflete mais o momento e fica nas relações interpessoais. Perdeu-se o objetivo de construir uma nação, que para nós era fundamental.
A perda desse objetivo prejudicou a literatura angolana?
Não diria que prejudicou em termos de qualidade. Antes, havia na literatura uma vontade de mudança. Até certo ponto, essa mudança aconteceu. O governo era dos colonizadores e passou a ser dos colonizados. A literatura primeiro sonhou essa mudança. Ao sonhar, ajudou a torná-la realidade. Depois criticou para ver se melhorava. A nova geração de escritores não se preocupa com isso porque nasceu depois da independência. Nota-se o individualismo a incrustar-se na literatura, reduzindo tudo ao pessoal.
O senhor é um admirador declarado de Jorge Amado. João Ubaldo Ribeiro aparece em um de seus romances, “Lueji: o nascimento de um império”. O senhor tem acompanhado a literatura brasileira contemporânea?
Pouco. Gosto do Julián Fuks. Há poucos brasileiros publicados em Angola. Depois da independência, nós editamos uma coleção com autores latino-americanos e africanos. Publicamos uns 20 títulos por um instituto ligado ao Ministério da Cultura, e o orçamento acabou. As pessoas tinham muito interesse pela América Latina. Quando digo América Latina quero dizer Brasil, ainda que conhecêssemos Gabriel García Márquez, que não publicamos porque os direitos autorais eram muito caros.
O que o senhor lê hoje?
Varia muito. Já tive uma fase árabe. Tive uma fase de romances policiais nórdicos, mas logo vi que eram todos iguais. Separei uns 40 livros da minha biblioteca para reler, como “Gabriela, cravo e canela”, do Jorge Amado, que foi o último que reli. É curioso. Da primeira vez, foi um sacrifício tremendo ir até o fim de “A montanha mágica”, de Thomas Mann, mas reler foi um enorme prazer. Há livros que a gente relê depois de décadas e percebe que não eram como imaginávamos. Não é só a memória a nos trair, mas os nossos pontos de vista que mudaram.
O senhor ganhou o Prêmio Camões em 1997. Este ano, o prêmio foi para Chico Buarque. O presidente Jair Bolsonaro diz que não pretende assinar o diploma, o que agradou a Chico…
Sou absolutamente solidário ao Chico. Tenho orgulho porque meu Camões foi assinado por dois intelectuais brilhantes: Fernando Henrique Cardoso e Jorge Sampaio, que era presidente de Portugal à época.