Após disputar o Oscar com ‘O abraço da serpente’, o colombiano Ciro Guerra explora, em longa que estreia nesta quinta-feira, o impacto do crime numa comunidade indígena nos anos 1960O filme colombiano “Pássaros de verão” Foto: Divulgação/Mateo Contreras Gallego / Divulgação/Mateo Contreras Gallego
Há pouco mais de dez anos, o diretor Ciro Guerra e a produtoraCristina Gallego rumaram para o norte da Colômbia para rodar “As viagens do vento” (2009), drama inspirado na música do lugar. De lá trouxeram relatos incríveis sobre um grupo étnico quase devastado pelo surgimento do tráfico de drogas na região, a partir dos anos 1960, que lembravam casos de gângsteres.
Parte daqueles testemunhos alimentam a trama de “Pássaros de verão”, épico que estreia amanhã e retrata a ascensão e queda de uma família da tribo uaiú, na península de La Guajira, a partir de seu envolvimento com a venda de entorpecentes. O filme, que foi o representante colombiano na pré-lista de concorrentes a melhor filme internacional no Oscar deste ano, concentra-se na disputa entre gangues pelo controle do comércio ilegal, mas quem paira sobre ele é a figura de Ursula (Carmiña Martínez), a matriarca do clã.
— A ideia era mexer com os clichês dos filmes de gângsteres, um gênero masculino, e incluir personagens femininos fortes conduzindo a história — explica Guerra, que dividiu a direção com Cristina, sua ex-mulher (os dois se separaram durante as filmagem de “Pássaros de verão”).
O roteiro combina personagens reais e imaginários, sempre iluminados pelos rituais religiosos da vibrante cultura dos uaiús. O ponto de partida é a ambição do pobre e taciturno Rapayet (José Acosta), que precisa levantar o dinheiro do dote exigido para casar-se com a bela Zaida (Natalia Reyes), filha de Ursula. O rapaz recorre ao comércio pontual de maconha para estrangeiros. Quando o negócio ganha vulto, outros códigos comerciais e legais se impõem.
Grande parte da equipe e do elenco foi arregimentada entre os nativos da região.
— Era importante deixar claro para eles que não estávamos fazendo um filme sobre os uaiús, mas com eles — argumenta Guerra, 38 anos, que concorreu ao Oscar com “O abraço da serpente” (2015), aventura de viés antropológico ambientada na floresta amazônica.
Mas a necessidade mais vital para os cineastas era a de desconstruir a figura do traficante, em geral glamourizada em filmes e séries.
— Hoje em dia, Pablo Escobar é visto como um herói, uma espécie de Robin Hood moderno, por causa do modo como tem sido retratado pelo cinema e pela televisão estrangeiros. Daí a importância de darmos a nossa visão sobre a questão — explica o diretor. — O cinema e a TV ajudaram a transformar o estilo de vida de gângster em algo desejado. Mas que experimentamos aqui foi uma tragédia, que devastou nossas bases morais.
Guerra acredita que as versões hollywoodianas do tráfico de drogas na América Latina só contribuem na construção da visão preconceituosa sobre o continente.
—Drogas são consumidas em todo o mundo, mas a América Latina é quem tem pagado o preço por isso, com vidas, corrupção e violência — entende o diretor, que tem “Waiting for the barbarians”, sua primeira produção em língua inglesa, na competição do próximo Festival de Veneza. — Essa guerra contra as drogas é, basicamente, uma guerra contra o capitalismo, porque é uma questão de oferta e procura, que tem que ser pensada como um problema de saúde pública. Manter o foco apenas na criminalização só faz a guerra algo mais rentável, pois mantém os cartéis poderosos.