‘Eu estava apavorado’: uma entrevista com o autor da foto histórica do Massacre da Praça da Paz Celestial, há 30 anos

"O rebelde desconhecido": a foto, durante o Massacre da Praça da Paz Celestial, na China, em 1989, repercutiu no mundo

POR WILLIAM HELAL FILHO

O americano Jeff Widener se viu em maus bocados nos primeiros minutos do dia 4 de junho de 1989. Fotógrafo da Associated Press no Sudeste da Ásia, ele estava cobrindo a ocupação da Praça na Paz Celestial, em Pequim, onde manifestantes eufóricos reivindicavam liberdade, até que o exército chinês reprimiu brutalmente os protestos. De uma hora pra outra, o clima de esperança virou um banho de sangue. Estima-se que entre 500 e 2.600 pessoas morreram no Massacre na Praça da Paz Celestial, há 30 anos. Em meio à súbita escalada de tensão, Widener foi agredido por um grupo de manifestantes confusos e, em seguida, levou uma pedrada que destruiu sua câmera e quase o deixou inconsciente. Mesmo assim, no dia seguinte, ele estava em local privilegiado para fazer a foto do chinês que se colocou de pé diante de uma coluna de tanques, impedindo a passagem das máquinas de guerra. Nesta entrevista ao Blog do Acervo, Widener narra os bastidores da imagem, que ganhou o nome de “Tank man” (“Homem do tanque”) e se tornou um símbolo daquele episódio.

Como estava a atmosfera na Praça da Paz Celestial nos dias de protesto? Como as pessoas estavam vivendo aquele momento de reivindicar a liberdade antes de o exército chegar e começar a atirar?

Era uma atmosfera de carnaval. Até mesmo alguns policiais se reuniam com os manifestantes e cantavam com eles. Foi tudo bem organizado, havia uma espécie de anel de segurança em torno da área central da praça. A área mais segura tinha homens dirigindo prensas mecânicas, onde eram impressas notícias sobre os vários eventos que aconteciam durante aquelas grandes manifestações. Foi incrível ver os estudantes construindo a “Deusa da Democracia” (monumento feito de espuma e papel machê), quando o sol nasceu pela manhã, e acho que a maioria dos jornalistas se envolveu com a história, fazendo a pergunta: “É realmente possível que a China comunista esteja se voltando para a democracia?”. Eu tive minhas dúvidas.

O fotógrafo Jeff Widener durante a cobertura do Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989 (à esquerda), e nos dias de hoje (à direita)

Qual foi o momento em que você percebeu que a atmosfera mudou e a violência começou?

Na noite de 3 de junho de 1989, eu puxei canudinhos com dois colegas fotógrafos para ver quem trabalharia no turno da noite, monitorando a situação nas ruas de Pequim. Eu estava de bicicleta com o colega repórter Dan Biers da AP. Embora tudo parecesse calmo, tive uma sensação desconfortável e compartilhei meus pensamentos com Dan. Poucos minutos depois, um grupo de homens e mulheres se movia silenciosamente durante a noite, puxando barricadas para a Avenida Chang’an (perto da praça). Então, um homem velho com uma longa barba branca se aproximou de mim sorrindo e abriu um casaco pesado para revelar uma machadinha que estava pingando sangue. Ele a mostrou como se estivesse exibindo um troféu. Chocado, forcei um sorriso fraco de reconhecimento e rapidamente saí da cena. Foi quando entendi que algo horrível estava prestes a acontecer.

Eu li que, no meio da confusão na praça, as pessoas tentaram te espancar…

Acho que foi um desentendimento entre os manifestantes. Alguns queriam que eu tirasse fotos, e outros temiam que suas ações pudessem colocá-los em problemas com o governo. Este incidente aconteceu próximo a um carro blindado em chamas na Avenida Chang’an. Tirei meu passaporte do bolso e gritei “americano!”. Um dos líderes acalmou a multidão e, então, apontou para um soldado morto no chão e me falou “Você foto”, “Você mostra mundo”. Eu tirei a foto, mas àquela altura meu flash estava quase sem bateria, e eu só conseguia fazer uma foto a cada 60 segundos. Os manifestantes começaram a discutir entre eles, e eu saí engatinhando no meio da multidão.

Militares começam a entrar em conflito com manifestantes, durante o Massacre da Praça da Paz Celestial, na China, em 1989

O que aconteceu depois disso?

Me levantei e me afastei um pouco do carro blindado que estava sendo consumido pelo fogo. Um homem estava rolando no chão, em chamas, enquanto outro homem tentava ajudá-lo. Eu olhei para o meu flash, esperando pela luz de recarga. Estava tudo escuro, eu não enxergava nada a meu redor. Era uma tortura mental. Então, assim que a pequena luz laranja piscou no meu estroboscópio, levantei a câmera para fazer a imagem, e um terrível golpe atingiu minha câmera. Fiquei atordoado e por pouco não desmaiei. Olhei para baixo e vi minha câmera toda destruída, coberta com o meu sangue, ao lado de um enorme pedaço de cimento que tinha sido jogado por um manifestante. Pude ouvir as risadas do outro lado da rua. Minha cabeça estava girando, mas vi quando a porta do carro blindado se abriu, e um soldado saiu para se render. A multidão de rua se aproximou dele agressivamente, e comecei a perguntar aos manifestantes se eles tinham um flash. Eu não estava pensando claramente. Minha câmera estava destruída.

Como você se recuperou para fazer a foto do Homem do Tanque?

Depois de quase morrer e me sentindo gripado, eu dormi a maior parte daquele dia (4 de junho). Mas, quando cheguei ao escritório da AP, num complexo diplomático, tinha uma mensagem da sede da agência, em Nova York, pedindo para eu fotografar a Praça da Paz Celestial ocupada. Fui de bicicleta até o Hotel de Pequim, próximo da praça. Eu estava apavorado. O trajeto, de cerca de 3,2 km, era muito perigoso. Havia veículos queimados na rua e bicicletas destruídas por tanques. Eu podia ouvir tiros por toda parte e sabia, por outras fontes, que agentes da polícia secreta, vestidos de macacão branco, estavam atacando jornalistas com bastões de choque.

O GLOBO noticia, no dia 05 de junho de 1989, mais de mil mortes durante o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989

O que você fez para não ser identificado como fotógrafo?

Escondi a câmera na minha jaqueta, e o filme na minha cueca. Quando me aproximei do hotel, identifiquei cinco ou seis policiais secretos. No saguão escuro do hotel, vi um estudante de intercâmbio americano chamado Kirk Martsen. Fingi conhecê-lo e, sussurando, expliquei a situação e perguntei se poderia me levar até seu quarto. Ele concordou, e os seguranças que se aproximavam pensaram que eu estava com Kirk, então se afastaram. No elevador, Kirk me disse que eu tive sorte, porque 10 minutos antes um caminhão cheio de soldados atirou em hóspedes do hotel no saguão. Seus corpos foram arrastados de volta para o hotel.

Foi do quarto de Kirk que você fez a foto?

Depois de entrar no quarto de Kirk, estava tão exausto que adormeci na cama. De vez em quando eu ouvia barulhos na rua e corria para a sacada para fotografar tanques empurrando ônibus queimados e ciclistas transportando civis feridos ou moribundos. Acabei ficando sem filme e perguntei a Kirk se ele poderia encontrar mais pra mim, com algum turista. Ele concordou e voltou com apenas um rolo de filme colorido Fuji 100 ISO. Eu carreguei na minha câmera Nikon FE2, que tinha um medidor de exposição automática. Quando ouvi a coluna de tanques descendo a rua, voltei para a varanda do 6º andar e alinhei minha lente Nikon de 400mm para a foto. De repente, um homem apareceu na rua sacudindo sacolas de compras. Eu estava aborrecido e disse ao Kirk: “Ele vai estragar minha composição”. Kirk gritou: “Eles vão matá-lo!”. A cena estava muito longe, então eu corri para a cama e adicionei um teleconverter Nikon TC-301, o que dobrou a distância focal da minha lente para uma teleobjetiva monstruosa de 800mm. Eu compus a foto enquanto um tiroteio soou no Boulevard Chang’an.

Manifestantes tentam impedir passagem de tanque durante os protestos de Pequim em 1989

Você imaginou que tinha acabado de registrar uma cena histórica?

Depois de fazer manualmente três exposições, fiquei chocado ao ver que minha velocidade do obturador estava mostrando 1/30 de segundo, que era incrivelmente lento para uma imagem nítida. Haveria muito borrão de movimento. Chateado com o meu erro, tentei descobrir o que tinha dado errado. Quando percebi que estava usando um filme ISO, mais lento do que o que costumava usar, o homem foi arrebatado por espectadores. Kirk me perguntou se eu consegui a foto, e eu respondi “Não”. Mas algo no fundo da minha mente me disse que apenas uma foto poderia ter saído bem. Às vezes, os fotógrafos têm um instinto para as coisas, e meu palpite estava certo. Milagrosamente, uma imagem estava boa o suficiente! Depois de tudo, o Kirk ainda arriscou a vida para contrabandear o filme até o escritório da AP, passando por vários soldados na rua. O material foi transmitido para Nova York, e eu pude mostrar a incrível bravura daquele herói desconhecido.

Existem muitas histórias sobre o que pode ter acontecido com o homem na foto, mas nenhuma oficial. O que você acha que aconteceu?

Quanto mais vejo o vídeo daquele momento, mais eu acho que ele foi levado pela segurança, mas eu não posso ter certeza. A maneira como ele foi empurrado pelos espectadores me incomoda. Ele foi empurrado com bastante força.

Manifestantes em cima de um tanque do exército chinês, em junho de 1989

Na época, você ficava baseado em Bangcoc, na Tailândia, e foi a Pequim por causa das manifestações. Depois do massacre e da publicação da foto, você ficou na China por muito mais tempo?

Eu estava muito nervoso após a noite de 4 de junho, e o complexo diplomático onde ficava o escritório da AP ainda ficou no meio de um tiroteio. Realmente pensei que fosse morrer naquele dia. Tanto que já estava imaginando qual o calor de uma bala ao entrar nas minhas costas e sair pelo meu estômago. Eu finalmente saí de Pequim uma semana depois da repressão militar na praça e fiquei tonto durante algumas semanas, por causa da minha lesão na cabeça. Até hoje, tenho um problema de equilíbrio por causa daquela pedrada na madrugada do dia 4.

Como o governo chinês reage à mesma foto hoje em dia? A imagem é permitida no país?

O governo inicialmente mostrou a imagem na China para mostrar a moderação do governo ao não matar o “homem tanque”, mas agora a imagem é proibida na China continental. Minha foto é amplamente usada em Hong Kong, especialmente durante as vigílias anuais com velas, em homenagem aos mortos no massacre.

Trinta anos depois, qual o significado daquela foto hoje em dia para pessoas que ainda lutam por seus direitos?

Acho que é um exemplo clássico de David contra Golias e da necessidade humana de combater a injustiça no mundo.

Estudantes erguem a "Deusa da Democracia", na Praça da Paz Celestial, durante manifestações na China, em 1989
Protestantes acamparam durante manifestação que ficou conhecida como Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, na China
O Globo

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