O fim do foro, a renovação parlamentar e o STF como ator de veto explicam a onda de ataques à corte
Certa feita perguntei a um ministro do Supremo sobre as chances de o STF aprovar, por iniciativa da corte, a extinção do foro por prerrogativa de função de parlamentares. Sua resposta: “Foro significa poder, e ninguém no tribunal quer perder poder!”.
Esta é a chave para a interpretação dos ataques ao Supremo: ameaças de CPIs, de impeachment de juízes e de anulação da PEC da Bengala. A corte perdeu poder.
Ao transferir para a primeira instância, em maio de 2018, o julgamento de crimes não relacionados ao exercício do mandato parlamentar, o STF abdicou do poder que teria sobre parlamentares que são potencialmente réus. (Aliás com isso rompeu-se o equilíbrio existente no desenho institucional entre a corte e o Senado, que julga os ministros do STF em processo de impeachment.)
Há dois outros fatores que ajudam a explicar os ataques recentes. Em primeiro lugar, devido à inédita renovação parlamentar —sobretudo no Senado, onde a taxa de renovação chegou a 87% (46 das 54 vagas em disputa)—, muitos neófitos não têm passivo judicial e, portanto, não têm vulnerabilidades, o que lhes garante maior assertividade e até audácia.
Em segundo, o STF está sob ataque pois terá enorme protagonismo no governo Bolsonaro. Será o ator com efetivo poder de veto sobre a agenda do governo: contrariando iniciativas na área comportamental e de segurança pública e coibindo abusos e violações da separação de Poderes. Não é à toa que a base aliada lhe é hostil.
Essas pautas do governo encontrarão uma virtual unanimidade antagônica no STF.
A era das dissensões parecerá a um observador do futuro ter ficado no passado: a corte atuará coesa pelo menos até a nomeação dos substitutos de Celso de Mello (novembro/2020) e Marco Aurélio Melo (julho/2021). O julgamento da equiparação da homofobia a crime de racismo pode estar inaugurando o novo padrão.
O modus operandi individualista da corte —o ativismo processual que lhe caracteriza— sugere que mesmo nomeações isoladas podem ter grandes implicações práticas. Supondo que alguém como Sergio Moro seja nomeado para uma das cadeiras, as divergências se circunscreverão à legislação penal, e não a pautas de costumes ou relativas aos “checks and balances”.
As críticas ao protagonismo do STF agora sofrem radical inversão, mudando de sinal: coloca a oposição de esquerda em situação inédita de apoio à corte em um campo em que esse apoio é fundamentalmente de centro-direita.
O STF ganha assim uma centralidade provavelmente inédita no sistema político em um contexto em que paradoxalmente perde poder em relação ao Parlamento.
*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
Folha de São Paulo