Uma cena está prestes a ficar mais comum em São Paulo: encontrar uma bicicleta parada na calçada e pronta para ser usada por qualquer um que tenha um aplicativo no celular para destravá-la e pagar pela viagem.
Essa nova rede de bicicletas compartilhadas não tem estações. Ao chegar ao destino, a pessoa a estaciona na rua e a deixa para o próximo pedalar.
Esse tipo de serviço começou a fazer sucesso na China há dois anos, e, em 2017, chegou às ruas dos Estados Unidos, de países da Europa e de outras partes do mundo. Agora, começa a funcionar no Brasil.
“É uma forma diferente de introduzir a bicicleta na cidade e ajudar a complementar a forma como as pessoas se locomovem”, diz à BBC News Brasil Ariel Lambrecht, cofundador da Yellow, a primeira empresa do tipo por aqui.
Serão 500 bicicletas no início, em um teste de duas semanas. Devem chegar a 20 mil até o fim do ano, quase dez vezes mais do que o Bike Sampa, a principal rede de bicicletas compartilhadas da cidade até agora.
Outras duas empresas já estão cadastradas para lançar serviços iguais, segundo a Prefeitura de São Paulo – a chinesa Mobike, uma das maiores do mundo, e a Serttel, de Recife. Elas estão em “processo de adequação de seus sistemas” e ainda não têm data para estrear.
Esse novo jeito de compartilhar bicicletas está em ao menos 200 cidades do mundo. Já faz parte da paisagem em Seattle, Pequim, Melbourne, Paris, Washington, Lisboa, Roma, Londres, Nova York e é celebrado como uma novidade em mobilidade urbana.
“No passado, comprávamos mobilidade ao nos tornar proprietários de um carro. Hoje, a mobilidade é cada vez mais um serviço que contratamos”, diz Ralph Buehler, professor de Planejamento e Assuntos Urbanos da universidade Virginia Tech, nos Estados Unidos.
No entanto, uma das suas principais vantagens – elas param em qualquer lugar – também pode ser um inconveniente. De solução, essas bicicletas se tornaram um problema.
Já ficaram famosas cenas registradas na China, onde há milhões delas em operação, de bicicletas amontoadas nas ruas ou reunidas aos milhares em cemitérios após serem removidas de calçadas ou danificadas.
Muitas são vandalizadas e atiradas em rios, canteiros e jardins. Ou até mesmo jogadas em árvores ou transformadas em esculturas como protesto.
São frequentes nas redes sociais as reclamações de quem depara com elas bloqueando seu caminho nas calçadas. O perfil Dockless Bike Fail (fracasso da bike sem estação, em tradução livre) foi criado no Twitter para reunir fotos de problemas em Seattle. “Tem de haver um jeito melhor”, explica em sua descrição. “Isso. Não. Está. Funcionando.”
“A recepção do público tem sido surpreendentemente negativa”, diz Buehler.
“Enquanto as bicicletas compartilhadas com estações foram bem recebidas e ajudaram a melhorar a imagem do ciclismo em geral, esse novo sistema tem gerado reações viscerais em parte do público.”
A tecnologia por trás das bicicletas sem estações
Bicicletas compartilhadas foram criadas orignalmente em Amsterdã, na Holanda, nos anos 1960, sem estações ou cadeados, explica Buehler. Mas as witte fietsen (bicicletas brancas, em holandês) sofreram com vandalismo e roubos, e o sistema não vingou.
A Dinamarca fez uma nova tentativa trinta anos depois. As bycykler københavn(bicicletas da cidade de Copenhague, em dinamarquês) ficavam presas por correntes às estações e eram destravadas com moedas.
Mas só na década passada, em sua terceira geração, as bicicletas compartilhadas começaram a fazer sucesso de fato, com estações mais baratas e simples de instalar graças aos painéis solares e compatíveis com pagamentos eletrônicos, como cartões, o que facilitou o acesso a elas.
Existem cerca de mil cidades no mundo com alguma rede desse tipo, segundo o Instituto de Políticas para Transporte e Desenvolvimento (ITPD), nos Estados Unidos.
Hoje, esse mercado cresce 20% por ano e deve movimentar R$ 23,1 bilhões em 2020, segundo a consultoria alemã Roland Berger. Mas seu modelo mais comum até agora, com estações, tem limitações.
“Um dos maiores desafios ainda é o custo das estações. Esse tipo de serviço não cobre uma cidade inteira”, avalia Dana Yanocha, pesquisadora do ITPD.
A redistribuição das bicicletas pela cidade também é uma questão. Não é raro encontrar estações vazias. Ou completamente cheias e ter de procurar outra para deixar a bicicleta.
A tecnologia das bicicletas sem estação ajuda a resolver isso. Elas são equipadas com GPS e se conectam à internet. Isso permite usar um programa no celular para achá-las onde estiverem, além de destravar e pagar.
“Por não ter estações, as bicicletas vão aonde as pessoas precisam. A rede se movimenta organicamente. Inclusive, acredito que chegarão à periferia muito mais rápido do que o sistema com estações conseguiria. É mais democrático”, diz Lambrecht, da Yellow.
Com milhões de bicicletas nas ruas, surgem problemas
As bicicletas compartilhadas sem estações se tornaram nos últimos dois anos uma alternativa de transporte em centros urbanos.
“A maior parte do crescimento de bicicletas compartilhadas em 2017 nos Estados Unidos veio das redes sem estação”, diz Nicole Payne, da Associação Nacional de Autoridades Municipais de Transporte, órgão que dá apoio em mobilidade a 62 grandes cidades americanas.
A chinesa Ofo tem mais de 200 milhões de usuários em 250 países. A Mobike tem um número semelhante em 180 cidades.
Ambas as empresas são financiadas por gigantes de tecnologia da China e receberam aportes de US$ 1 bilhão cada uma recentemente. Em abril, a Uber comprou outra companhia do gênero, a Jump, de bicicletas elétricas.
“É interessante ver esse interesse de fundos de capital de risco e companhias como o Uber nestas empresas”, diz Yanocha.
“As redes de bicicletas com estações costumam ser parcerias público-privadas. Esse novo modelo, mais flexível e acessível, é atraente para os investidores.”
Mas, ao mesmo tempo, algumas cidades têm enfrentado contratempos com eles.
Em Paris, a Gobee.bikes encerrou sua operação – e já fez o mesmo em Lille, Reims, Milão, Roma, Turin e Bruxelas – após a “destruição em massa” de sua frota de bicicletas.
Lisboa precisou recolher bicicletas acumuladas em praças e sobre bancos nas ruas. Melbourne criou regras para esse serviço após uma série de reclamações de bicicletas bloqueando calçadas. Problemas semelhantes ocorreram em Seattle e Phoenix, nos Estados Unidos.
Pequim, Xangai e Shenzhen suspenderam novas bicicletas nas ruas por causa do grande número já em circulação.
“As empresas chegaram e disseram: ‘Vamos dar tudo de graça, não vai precisar de recursos públicos ou buscar patrocinadores’. E muitas cidades pensaram: ‘Que ótimo, não vamos precisar pagar nada’. Mas está ficando claro que essa abordagem não funciona”, afirma Yanocha.
As cidades precisam gerenciar esse sistema, defende a pesquisadora, especialista em desenvolvimento urbano. “As cidades não podem deixar as empresas operarem livremente, porque acabam atravancando o espaço público. Precisa ser bem pensado para não criar uma indisposição nas pessoas com as bicicletas em geral.”
Ela cita exemplos como o de Chicago, onde as bicicletas precisam ser presas em locais como paraciclos, para garantir que não fiquem no meio do caminho. Outras cidades estão criando áreas de estacionamento. “Isso diminui um pouco da flexibilidade do sistema, mas é uma resposta aos problemas.”
São Paulo cria regras para evitar contratempos
Em São Paulo, um decreto abriu caminho no ano passado para a chegada desses serviços sem estações.
As bicicletas compartilhadas existem na cidade há seis anos – e seu uso vem aumentando.
Desde a reformulação do Bike Sampa no início do ano, com novas bicicletas e estações, o número de viagens cresceu cinco vezes. Já chegam a 120 mil por dia, de acordo com a Tembici, empresa por trás da rede paulista e que atua em mais 14 cidades do país.
“É importante esse modelo sem estações chegar ao Brasil. Quanto mais bicicletas nas ruas, melhor para o nosso negócio e para as cidades”, diz o presidente da Tembici, Tomás Martins.
O executivo diz que chegou a avaliar essa ideia, mas preferiu manter sua rede com estações.
“Infelizmente, no Brasil, não há muito espaço de calçada e áreas públicas onde você pode colocar várias bikes. É complicado. Mas, quando as cidades criam regras, ajuda o serviço a ter mais sucesso.”
É o caso de São Paulo, que se adiantou e estabeleceu normas para essas empresas operarem.
Uma resolução prevê que as bicicletas sem estações devem ser retiradas e devolvidas em pontos virtuais identificados pelo aplicativo. O preço máximo de cada viagem é de até duas passagens de ônibus, atualmente R$ 8.
“As empresas são responsáveis por evitar que as bicicletas sejam deixadas em locais que dificultem a mobilidade de pedestres, como calçadas. A Prefeitura prevê sanções como multa para quem descumprir essa regra”, informou a secretaria municipal de Transportes à BBC News Brasil.
A Yellow diz que fará campanhas para educar os usuários, que serão premiados – ou punidos – por seu comportamento. As punições, no entanto, ainda serão avaliadas em um segundo momento. Também terá funcionários que circularão pela cidade para verificar se as bicicletas estão estacionadas da melhor forma ou se precisam de manutenção.
A empresa afirma que minimizará os roubos por ter bicicletas que podem ser rastreadas eletronicamente e com peças exclusivas ou que não podem ser reutilizadas em boa parte dos modelos mais comuns.
O plano da Yellow é ter até 100 mil bicicletas em São Paulo e lançar redes em outras cidades. “Acho que existe muito alarde sobre os problemas, não é tão avassalador como parece”, diz o cofundador da empresa.
“Acredito que São Paulo vai receber muito bem nossas bicicletas. Estamos sendo super cautelosos e conversando constantemente com o poder público para fazer de forma organizada e não deixar fugir do controle.”