Ferreira Gullar, o poeta do espanto

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    Manuel da Costa Pinto – Folha de S.Paulo/Ilustrada

Se fosse para definir numa frase o legado de Ferreira Gullar para a literatura brasileira, uma formulação possível seria: o autor de “Poema Sujo” reabilitou na poesia contemporânea a meditação sobre temas como a angústia da morte e o maravilhamento diante do simples acontecer da vida, sem deixar de sustentar um rigor formal e um sentido de inovação linguística característico das vanguardas do século 20.

Ao avaliar a trajetória do escritor maranhense, é necessário refletir sobre os caminhos da própria poesia nos últimos cem anos, que Gullar percorreu às avessas.

Do modernismo de 1922 (Mario e Oswald de Andrade, Manuel Bandeira) à poesia concreta dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e de Décio Pignatari, passando pelo caráter construtivista de João Cabral de Melo Neto, a poesia brasileira atingiu um tal grau de refinamento da linguagem que acabou por exigir, dos leitores, um repertório capaz de identificar o modo como cada poeta dialogava com essa linhagem renovadora.

Dito de outra maneira: mesmo em seus momentos mais “prosaicos”, atentos às coisas miúdas do cotidiano (o poema-piada de Oswald, as nostalgias da humildade em Bandeira), essa poesia carregava a ideia de que cada poema, por singelo que fosse, era um gesto singular de ruptura com a tradição beletrista, com a retórica herdada da poesia portuguesa, embutindo uma sensibilidade especificamente brasileira -mas só acessível, paradoxalmente, a leitores argutos, em geral com formação acadêmica, cientes dessa tradição e, portanto, apartados do leitor comum.

O melhor exemplo é o célebre poema “No Meio do Caminho”, de Drummond, em que as variações sobre o mote “tinha uma pedra no meio do caminho” eram simples na forma, porém enigmáticas no conteúdo.

Gullar surgiu poeticamente quando esse percurso já havia avançado muito. Depois de “Um Pouco Acima do Chão” (livro de 1949 que o próprio autor descartaria como ingênuo), publicou “A Luta Corporal” (1954), em que a contemplação inicial de coisas elementares (um galo “desamparado, num saguão do mundo”; peras que “no prato, apodrecem”) deriva, ao final, para versos que desconstroem a fala ordinária até a implosão sintática e fonética do poema “Roçzeiral”.

Intuitivamente, Gullar se sintonizava assim com pesquisas formais que o levariam, nos anos 1950 e 60, a ser um companheiro de viagem da poesia concreta -corrente de vanguarda que pensava tais experimentações de modo muito mais sistemático e erudito.

Até o momento em que se indispôs com o que considerava um excessivo cerebralismo, dando uma guinada para formas de expressão menos herméticas, com maior comunicabilidade e até mesmo apelo popular -como nos poemas de cordel escritos no momento de efervescência política do governo João Goulart, que o próprio autor considera um exercício de proselitismo.

Nem vanguardista nem artista engajado, talvez se possa dizer que o Gullar que permanecerá, após sua morte, como nome fundamental da poesia brasileira tenha começado a nascer com “Poema Sujo”, escrito no exílio em Buenos Aires, na atmosfera caótica que precedeu o golpe militar argentino de 1976.

O poema se inicia com uma cadência vertiginosa (“turvo turvo/ a turva/ mão do sopro/ contra o muro/ escuro/ menos menos/ menos que escuro”), criando um turbilhão de “vozes perdidas na lama”, com imagens expressionistas da infância maranhense e dos desastres da história.

A partir daí, Gullar publica, entre longos intervalos, livros que combinam lirismo violento e objetividade, abismo existencial e uma perspectiva social expressa em seu ouvido atento à fala das ruas, como em “Muitas Vozes” (1999). “Todas as coisas de que falo estão na cidade/ entre o céu e a terra/ […]/ Todas as coisas de que falo são de carne/ como o verão e o salário”, escreve ele em poema do livro “Dentro da Noite Veloz” (1979).

Com isso, Gullar conserva o sentido perturbador (na temática crítica e na forma explosiva) da poesia de vanguarda, porém estabelecendo uma empatia com o público geral que só encontra paralelo na poesia em tom menor do gaúcho Mário Quintana e do mato-grossense Manoel de Barros.

Com a diferença que, enquanto estes têm algo de sentimental e até mesmo piegas, Gullar mereceu também da parte de poetas e críticos o reconhecimento por ter restaurado um sentimento de perplexidade que está no coração da experiência moderna.

Fonte: UOL/Folha de S.Paulo

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