Elisa Martins
O Globo
A vitória de Jair Bolsonaro quebra um padrão da política tradicional, diz o cientista político Jairo Nicolau . Para o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a campanha deste ano marcou uma inflexão na política brasileira, ao deslocar uma elite política tradicional, e reacendeu uma nova força política em uma eleição da era digital. Com Bolsonaro, surge uma nova forma de comunicação política e de fazer política, diz o analista, que compara ainda a polarização observada nesta eleição com a de 1989, que levou muita gente às ruas.
O que as urnas expressam com esse resultado?
Existe uma quebra de um certo padrão da política tradicional, conservadora. Ainda é cedo para dizer o que ascensão dessa nova elite política significará. Mas é fato que a campanha marcou uma inflexão de vários tipos na política brasileira. Ela deslocou uma elite política tradicional e reacendeu uma nova força política, em uma eleição da era digital para valer, das redes sociais, e de uma nova forma de comunicação política e de fazer política. Haddad também fez uma campanha diferente, em que só conseguiu chegar mais perto nesse final graças ao impulsionamento nas ruas e principalmente à mobilização nas redes. Uma parte do crescimento que o fez saltar se deveu a essa onda. Não foi um voto petista que ele conquistou desde o início. Mais do que comícios, carreatas e corpo a corpo, que ele não abandonou e fez principalmente no Nordeste, ele teve uma campanha bastante apoiada nas redes nessa reta final. Foi o que diminuiu a diferença com Bolsonaro, que o levou a ter um crescimento maior entre os eleitores no segundo turno do que o próprio Bolsonaro. A derrota esconde uma sensação de que o esforço não deu em nada. Mas se não tivesse feito essa mobilização nas ruas e nas redes teria perdido por muito mais.
Como imagina um governo que se comunica dessa forma?
É o padrão do maior tuiteiro do mundo, que é o presidente americano, Donald Trump, que se comunica com seus milhões de seguidores dessa forma. Não sei se Bolsonaro faria isso, porque existe a liturgia do cargo, mas provavelmente vai manter uma forma de comunicação menos convencional, porque foi assim que ele cresceu. Foi assim que ele deixou de ser um deputado de fundo de plenário, que representava interesses militares, para incorporar uma agenda mais conservadora de costumes e posição mais ácida em relação ao PT. Teve um uso muito eficiente das redes sociais. Já tínhamos sinais disso, da força do WhatsApp, nas últimas eleições municipais, na greve dos caminhoneiros, como uma forma nova de comunicação e de mobilização. E todo mundo sabia que Bolsonaro, desde 2015, fazia uso desse instrumento como prioritário para se comunicar com os eleitores. Vimos isso também nas manifestações de 2013. O WhatsApp massificou a revolução digital. E não foi diferente na política.
O futuro – e a escolha – do próximo e dos próximos presidentes vai depender dessa nova forma de comunicação?
Sim, e ainda vão surgir outras. É difícil controlar e prever as surpresas das revoluções tecnológicas. Ninguém diria que hoje existiria essa forma de comunicação que temos… E ninguém poderia dimensionar o efeito disso na política. E a política agora vai ter que lidar com isso. E passar por uma revolução na relação entre cidadão e governo, que vai afetar o voto. Essa campanha no Brasil foi um laboratório mundial do uso do WhatsApp. E em eleições municipais isso vai crescer ainda mais, conforme o alcance da internet cresça nas cidades mais pobres.
O que mais foi marca nessas eleições?
Essa quebra da vida partidária brasileira que conhecíamos é o mais forte. Durante duas décadas, o sistema partidário tinha certa estabilidade. Tinha a ver com PT e PSDB disputarem as últimas eleições nos últimos segundos turnos. Foram dez turnos em que os brasileiros foram às urnas escolher PT ou PSDB. E sempre tendo o PMDB como um partido central da vida política, com bancadas grandes e poderosas. Nessa eleição vimos o deslocamento do PSDB, o declínio da bancada do PMDB e de outros partidos tradicionais que não foram tão bem. E isso aconteceu em um cenário de muitas surpresas, derrotas de políticos tradicionais, de grandes lideranças conhecidas dos brasileiros no âmbito estadual, que tiveram papel importante no processo de impeachment da Dilma, lideranças tradicionais do Congresso também. Mas destacaria também o desempenho surpreendente do PSL. Um partido que já existia desde 1998, mas que em quatro eleições elegeu apenas um deputado. Desapareceria nessa reforma da cláusula de barreira. Mas ressurgiu com um resultado espetacular. Há a destruição de um sistema político, que não sabemos como vai se reconfigurar, nem os temas e os partidos que dominarão nesse novo time. Os velhos atores e a velha forma de fazer política ficaram muito abalados nessa eleição.
Como surgiu essa onda conservadora que se mostrou nas urnas?
A Câmara é um bom termômetro das forças políticas nacionais. Mais do que a eleição presidencial nesse sentido. Se olharmos para a Câmara, temos um resultado que mostra claramente uma composição mais conservadora desde que o Brasil voltou à democracia em 1986. Nunca tivemos uma Câmara com perfil tão conservador. Isso indica um crescimento dos partidos de centro-direita, com destaque ao PSL, e declínio dos partidos de Centro. PSDB e PT têm juntos a menor bancada desde 1990, em um desempenho sofrível de duas forças que foram varridas e trocadas por um conjunto de partidos de centro-direita como PSL, DEM, PSB, PP. Há uma inflexão na opinião pública brasileira já há alguns anos. Mas há menos de uma década para cá há uma mudança na opinião pública brasileira. Os estudos têm apontado e reforçado essa percepção. É uma nova direita no país, em que não só forças políticas se assumem como de direita como intelectuais, sites, blogs, movimentos… Um movimento hiper conservador em comportamento, associado a igrejas evangélicas e um catolicismo conservador muito ativo que foi para a política. Há também presença de figuras do meio militar, quando observamos nas assembleias delegados, PMs, cabos, sargentos. É uma presença maior de políticos com origem militar. E não podemos nos esquecer que em 2015, 2016, vimos movimentos de rua de massa, de direita. A última vez que isso tinha acontecido foram nas passeatas depois do golpe de 1964. E esses movimentos foram muito reveladores da presença de um segmento da sociedade brasileira conservadora no campo dos costumes, da visão mais ampla da política, em um antipetismo visceral.
É possível fazer uma análise desapaixonada em uma eleição tão polarizada e de posicionamentos extremos?
Como estudioso do comportamento político brasileiro e dos partidos, tento fundamentar minhas análises nos dados, na história, em um certo afastamento. Mas essa eleição talvez tenha sido uma das mais difíceis para mim. A eleição de 1989 foi muito parecida, mas ela tinha um componente que faltou nessa, no segundo turno, que foi a rua. Havia muitos comícios, tanto do Collor, como do Lula, com milhares de pessoas mobilizadas. Às vezes eram dois, três comícios de candidatos por dia. Foi uma eleição muito polarizada. Mas não tínhamos as redes sociais como um lugar de diálogo entre as pessoas. Há uma diferença fundamental comparada com 1989, quando a informação circulava em outra velocidade. A polarização não transbordava com essa força que as redes sociais mostraram nessa campanha. Também não havia uma discussão de temas que apareceram nessa campanha atual, como elogios à ditadura, por exemplo. Pelo contrário, nos primeiros anos pós-governo militar esse era um assunto do qual todos os políticos queriam se afastar. Bolsonaro trouxe uma combinação de temas hiperconservadores no campo comportamental, alinhado a essa tendência de um conservadorismo difuso, muito apoiado pelas igrejas, e com uma agenda dura de segurança. Agora eleito, será preciso ver como vai conjugar o apoio na Câmara e o das urnas para governar de fato.