Para professora francesa, tanto os partidos de esquerda quanto os de direita passaram a adotar políticas econômicas que beneficiam os mais ricos
Por Cristiane Capuchinho, De Paris
Quanto custa ganhar um voto, e quem paga a conta das campanhas eleitorais?
A economista e professora da Sciences Po, universidade com sede em Paris, Julia Cagé se dedicou a essas perguntas nos últimos anos e constatou que os mais ricos, sendo os que mais doam para as campanhas eleitorais, conseguem influenciar as políticas dos partidos eleitos.
E mais: que tanto os partidos de esquerda quanto os de direita passaram a adotar políticas econômicas que beneficiam os mais ricos, como a redução de imposto sobre fortunas e ganhos e a desregulamentação do mercado de trabalho.
Em seu livro Le prix de la démocratie (“O preço da democracia”, em tradução livre), publicado na França no final de agosto, Cagé compara o sistema de financiamento de campanhas eleitorais em diferentes países, como França, Estados Unidos, Reino Unido, Itália, Alemanha e Canadá. Ela analisa os responsáveis pelas doações de campanha e o resultado em relação às políticas.
“Os partidos de esquerda dependem também cada vez mais do dinheiro dos mais ricos, então, vão colocar em prática políticas econômicas que não são de esquerda”, explica em entrevista à BBC News Brasil.
Para a economista, a cooptação da democracia por interesses privados é um elemento-chave na crise da representação pela qual passam tantos países ocidentais, inclusive o Brasil.
Como resolver isso? Ela defende a limitação de doações privadas para partidos, um parlamento eleito com cotas de representação social e um modelo de financiamento público com o nome de “bônus pela igualdade democrática”, em que cada cidadão teria direito a um valor igual de dinheiro público que seria doado ao seu partido de interesse a cada ano.
Sobre o caso brasileiro, Cagé critica enfaticamente o limite às doações privadas ser de 10% da renda do cidadão, o que, segundo ela, causa uma distorção em que os ricos têm mais direitos à representação política por terem renda maior.
Leia os principais trechos da entrevista realizada em Paris às vésperas da eleição presidencial no Brasil:
‘Analista francesa acha o modelo adotado pelo Brasil insuficiente e injusto com os mais pobres’
BBC News Brasil – Você diz que, no sistema eleitoral de hoje, quem paga, leva. É possível comprar votos indiretamente com o gasto de campanha?
Julia Cagé – Sim, e isso foi demonstrado nos casos francês, americano e brasileiro. Custa caro fazer uma campanha eleitoral. É preciso fazer reuniões, convenções, panfletos, imprimir as propostas, fazer campanha. É preciso fazer pesquisa para conhecer melhor o eleitorado e focar a sua propaganda em potenciais eleitores. Tudo isso custa muito dinheiro.
O que mostro com dados da França é que, com todas as condições iguais e na mesma região, um candidato que gasta 32 euros a mais que outro consegue um voto a mais. Claro que a diferença não se faz com 32 euros, mas vemos que, a partir de um certo montante de gasto eleitoral a mais, é possível mudar o resultado de uma eleição.
BBC News Brasil – Você cita uma relação entre desigualdade política e desigualdade econômica. Como funciona concretamente essa relação entre interesses privados e decisões políticas?
Cagé – Como o dinheiro tem um efeito sobre os resultados eleitorais, os partidos e os candidatos vão fazer uma corrida por doações mais do que uma corrida por votos. Quando olhamos quem são os doadores de partidos e de candidatos, são os mais ricos. Isso quer dizer que os políticos vão passar o seu tempo tentando convencer os mais ricos a lhes doar dinheiro para a campanha, o que tem consequências diretas nas medidas adotadas quando eleitos.
Se pegamos o caso do (presidente francês) Emmanuel Macron, é impressionante. Macron financiou sua campanha com dinheiro privado, principalmente com dinheiro dos mais ricos, e a primeira coisa que ele faz na Presidência foi suspender o imposto sobre fortunas e colocar um imposto único sobre a renda do capital. Essas medidas fiscais aumentam o abismo da desigualdade social. Os mais ricos pagam menos impostos, assim ficam ainda mais ricos e vão contribuir ainda mais para a eleição seguinte.
‘Cagé comparou o sistema de financiamento de campanhas em França, Estados Unidos, Reino Unido, Itália, Alemanha e Canadá’
Temos um desvio para a direita de toda a política econômica, e isso constatamos nos últimos anos tanto em partidos de direita quanto naqueles com características de esquerda, como o Trabalhista no Reino Unido, Hillary Clinton, nos EUA, o (Matteo) Renzi (Partido Democrata), na Itália.
BBC News Brasil – Essa virada nas políticas econômicas significa…
Cagé – Menos progressividade fiscal, isto é, menos impostos sobre fortunas, sobre renda, sobre herança. Nos Estados Unidos, isso também quer dizer não aumentar o salário mínimo. Quer dizer desregulamentação do mercado de trabalho e de leis trabalhistas, uma desregulamentação do mercado financeiro e, potencialmente, a falta de regulamentação de normas ambientais.
BBC News Brasil – E, na sua opinião, é essa busca por dinheiro dos mais ricos e esse descolamento entre partidos e eleitores que cria a crise da representação?
Cagé – Não pretendo explicar toda a crise da representação, mas acredito que o papel central e crescente do dinheiro privado tanto nos partidos de direita quanto nos de esquerda são uma parte do problema que não pode ser negligenciada. Isso faz com que as categorias populares que, historicamente, se viam representadas pela esquerda, não se sintam mais e, agora, se virem em direção a partidos populistas.
Não sou uma especialista (na situação brasileira), mas o que percebo no Brasil é um sentimento de que tanto candidatos de direita quanto de esquerda foram gangrenados pela corrupção. E os populistas se apresentam como limpos de corrupção. Há também esta ideia de que a direita e a esquerda tradicional estão no mesmo saco e não representam o cidadão, e os populistas seriam mais próximos do que o povo quer.
BBC News Brasil – Poderia detalhar como essa relação entre interesses privados e democracia leva ao atual momento de crescimento do populismo?
Cagé – As classes populares até então se sentiam mais representadas por partidos de esquerda, ou partidos com políticas econômicas mais voltadas ao social. Mas há um desvio à direita das políticas econômicas também destes partidos.
O caso dos EUA é um exemplo importante: Hillary Clinton foi classificada como candidata dos ricos. Então, uma parte do eleitorado de Bernie Sanders (mais à esquerda) se absteve do voto (em Hillary), e uma fração votou em Trump. Esses eleitores não se sentiam representados por Clinton, que, ainda que democrata, era (vista como) a candidata dos banqueiros, das finanças…
Historicamente, conseguíamos explicar relativamente bem os votos pela renda: pessoas com mais renda votavam mais à direita, pessoas com rendas baixas votavam com mais frequência à esquerda. Agora, temos um cenário turvo, sobretudo porque os pobres não se sentem representados.
‘Parte dos eleitores mais próximos aos democratas considerou Hillary ‘candidata dos ricos’ e não votou nela em 2016, afirma Cagé’
BBC News Brasil – Por que o financiamento público teria um papel na mudança dessa representação? No Brasil, como em outros países, o cidadão médio não concorda que o Estado deva dar mais dinheiro para os políticos.
Cagé – Há uma imagem de que os políticos são corruptos, então, realmente não é uma reação normal do indivíduo pensar que é preciso dar a eles mais impostos. O problema é que essa é a saída.
Peguemos o caso do Brasil: todos os partidos precisam de dinheiro para viver. Mesmo no caso de Lula, há um sistema de corrupção ligado sobretudo ao financiamento do partido, então, pode se dizer que o partido precisava de financiamento.
Depois disso, há uma reforma em que as doações de empresas são proibidas, sendo que elas eram as grandes financiadoras de campanha no Brasil. Temos então duas opções: ou concordamos que os partidos façam uso da corrupção para receber dinheiro, afinal, eles precisam de algum financiamento, ou vamos pensar em um sistema de financiamento público generoso e consequente.
Houve um movimento interessante em direção a isso no Brasil, mas não suficiente, já que o dinheiro do fundo público é muito inferior aos gastos de campanha. É preciso ir além. Punindo os políticos corruptos, mas também admitindo que, se queremos tirar o debate público das garras do interesse privado, é necessário um financiamento público.
BBC News Brasil – Tivemos no Brasil também a limitação de doações privadas a 10% da renda dos indivíduos…
Cagé – Isso é escandaloso. Entre os países grandes, apenas dois fazem isso, a Índia e o Brasil. Essa regra do Brasil introduz na lei uma desigualdade política, em que os ricos têm mais direitos. O que precisaria ser feito era colocar um teto que fosse o mesmo para todo mundo. Se não, de que adianta? As empresas não podem fazer doações, mas os acionários destas empresas farão as doações para compensar. Não há uma real saída da crise atual.
BBC News Brasil – Que outros problemas você vê no sistema brasileiro de financiamento?
Cagé – Ainda é preciso limitar muito mais as doações de pessoas físicas, e isso supõe adotar um financiamento público mais generoso.
Agora, é preciso rever a relação entre o Judiciário e a política no Brasil… Quando vemos de fora, parece que há um peso excessivo do Judiciário em relação às instituições eleitas.
BBC News Brasil – Você poderia explicar sua proposta de Parlamento com representação popular paritária e por que isso poderia mudar a política?
Cagé – Na maior parte das democracias, o Parlamento não é uma imagem da população. Na França, nos Estados Unidos, no Reino Unido, menos de 5% dos parlamentares já foram trabalhadores ou operários. Imagino que seja similar no Brasil. O que vemos é que os políticos têm a tendência de votar pelos interesses daqueles que os financiam. Em segundo lugar, vemos que as pessoas de origem popular, quando eleitas à Assembleia, não votam da mesma maneira que as mais ricas. O mesmo acontece quando comparamos os votos de homens e de mulheres no Parlamento. Ou seja, há consequências reais ter ou não uma Assembleia Nacional realmente representativa.
Eu proponho que uma parte do Parlamento, um terço do legislativo, seja eleita em listas paritárias segundo a representação social – com ao menos metade dos candidatos trabalhadores, operários ou com trabalhos precários-, para garantir uma certa representação das categorias sociais na Assembleia Nacional.
BBC News Brasil – O que você responde a quem considera limitar a contribuição a partidos como um limite à liberdade de expressão?
Cagé – Eu rejeito o argumento de que o dinheiro é uma forma de liberdade de expressão. A liberdade de expressão é a liberdade de exprimir suas ideias. A liberdade de falar, de defender suas ideias é a mesma para todo mundo, independentemente do seu patrimônio. Agora, contribuir para uma campanha não é uma coisa que todos podem fazer, depende da renda e do patrimônio. Fazer a equivalência entre o dinheiro e a liberdade de expressão é como dar mais direito à liberdade aos mais ricos, por definição.
BBC Brasil