Reflexões de um velho sábio sobre as crises do Brasil e da Argentina

Tela mostra os preços de compra e venda, em pesos argentinos, do dólar, do euro, do real e do peso chileno

Na Argentina, o dólar está por volta de 40 pesos

Clóvis Rossi
Folha

Transfiro hoje minha coluna a um velho sábio, que conhece muitíssimo das coisas do mundo e, em especial, da América Latina. Chama-se Enrique Iglesias, está com 88 anos e a lucidez de sempre. Consultei-o a propósito da crise argentina, mas as considerações que enviou em resposta a meu e-mail me pareceram tão relevantes que achei por bem transformá-las nesta coluna.

Iglesias começou sua resposta olhando para o estado do mundo, mas eu vou me limitar a reproduzir a visão dele sobre América Latina, por uma forte razão: Iglesias conhece tudo da região, conhecimento adquirido em seu longo período de 18 anos como presidente do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), até 2005, e em seguida, como secretário-geral ibero-americano, até 2014.

NOVOS DESAFIOS – Foi interlocutor de todos os governantes da região e teria episódios saborosos a relatar se e quando decidisse escrever suas memórias.

Iglesias vê desafios que frequentam outras análises (as crises na Nicarágua e na Venezuela; os impactos do dólar forte; o recuo dos investidores estrangeiros e por aí). Mas se preocupa, sobretudo, com “a grande divisão política da região” e “com o suicídio dos partidos políticos na maioria de nossos países”.

Completa: “No momento em que deveríamos estar unidos ante os impactos da guerra comercial [desatada por Donald Trump], que chegarão às nossas costas mais cedo ou mais tarde, não somos capazes de assumir posições coletivas de nenhuma natureza, mesmo em um âmbito mais restrito como é o Mercosul”.

E A ARGENTINA? – Em seguida, esse atento observador passa a falar de Argentina, mas com uma perspectiva que diz respeito também ao Brasil. Depois de lembrar que o presidente Mauricio Macri passou do gradualismo no ajuste de contas públicas ao choque, Iglesias comenta: “Conheci dezenas de ajustes desde meu posto no BID. São lentos, custosos e socialmente muito complicados” (Dilma Rousseff e Michel Temer que o digam).

No caso da Argentina, é pior porque Macri enfrenta “o sindicalismo mais organizado da América Latina, violento e mobilizador de multidões, e a ala kirchnerista, que tem seus clientes. São os ‘dependentes do populismo’, como também existem no Brasil”. Fecha assim: “Manejar um ajuste nestas condições é uma tarefa heroica como estamos vendo”.

Como o próximo presidente brasileiro, seja qual for, terá que enfrentar essa “tarefa heroica”, seria bom que tomasse nota da opinião de Iglesias.

APOIO EFETIVO – Ainda mais que esse experiente homem de Estado lembra algo sobre a Argentina que deveria ser levado em conta também no Brasil.

“Nunca um país em processo de ajuste teve tanto apoio efetivo do FMI e do presidente dos EUA. E, apesar disso, nem os argentinos nem os investidores estrangeiros se sentem atraídos. A confiança se constrói durante anos e se perde em um dia. É o que devem aprender nossos governos quando observam como, apesar dos maciços apoios externos de Macri, não consegue vencer a desconfiança dos argentinos”.

Sugestão de Iglesias ao futuro presidente do Brasil: “Tratar de evitar os ajustes prolongados no tempo e reconstruir a confiança no governo, nas pessoas e na política”. Acho que essa segunda parte da frase é a chave, a partir de 1º de janeiro.

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