‘O computador pessoal foi invenção de um bando de hippies nerds’, diz historiador

John McLaughlin fala sobre o surgimento do Vale do Silício nos conturbados anos 1960

John McLaughlin viveu o movimento de contracultura no Vale do Silício – ARQUIVO PESSOAL

POR SÉRGIO MATSUURA

 O historiador John McLaughlin é presidente da Associação Histórica do Vale do Silício e acompanhou as agitações políticas da década de 1960 e o surgimento do coração da indústria global de tecnologia.

Como era o clima no Vale do Silício com as agitações políticas de 1968?

No Vale do Silício, e em todo o país, a Guerra do Vietnã era o acontecimento mais importante, particularmente para os homens com menos de 30 anos. Se você pudesse segurar uma arma, poderia ser convocado para lutar. A única forma de evitar que isso acontecesse era ir para a faculdade, em tempo integral, e não repetir em nenhuma matéria. Nas universidades existia o movimento contrário à guerra, todos eram contra. Do outro lado estavam os adultos mais velhos, o governo, o establishment, que pensava: “por que esses garotos não querem ir morrer no Vietnã?”. Por isso, no Vale do Silício, esse período tinha poucos empreendedores. Se você tinha que estar na faculdade em período integral, não podia começar a Apple ou a Microsoft. É uma forma estranha de se analisar, mas se você tem uma situação política como tínhamos em 1968, seu principal objetivo é continuar vivo. Se for abrir uma companhia, você será convocado. Era parte da realidade que todos enfrentavam.

E como era a indústria de tecnologia?

Em 1968, a maior parte do dinheiro e dos projetos no Vale do Silício eram militares. Era quem pagava por melhores equipamentos, então a forma de ficar rico era criar um produto que os militares comprassem. É o que a Lockheed Martin e a Hewlett-Packard, eventualmente, faziam. A maioria das companhias agia assim. Existiam tantas coisas horríveis acontecendo em 1968 que você tinha que escolher um lado. Ou ser pró-governo, ir lutar uma guerra, ser anticomunista. Ou ser parte da contracultura, ouvir Grateful Dead. Nesse cenário, a Intel foi fundada.

E o ano ficou marcado pela grande apresentação de Douglas Engelbart, que fez uma demonstração de uma tela de computador controlada por um mouse. Nós só percebemos a importância disso agora, porque na época não podia ser feito. Doug era uma alma gentil, que queria conectar o intelecto de pessoas inteligentes para construir um mundo melhor. Era um visionário. Não quero acusar o Doug, não é um fato, apenas uma sugestão, mas acho que o Doug fazia experimentos com LSD, que eram realizados num hospital em Menlo Park. As pessoas que usavam o LSD eram mais visionárias que as pessoas comuns.

O mouse apresentado por Douglas Engelbart em 1968 – John McLaughlin

Mas já existia uma indústria estabelecida?

No fim dos anos 1950, foi fundada a Fairchild Semiconductor, que produziu o primeiro circuito integrado. E dela, surgiram mais de 40 companhias formadas por ex-funcionários, a Intel é uma delas, dando início ao Vale do Silício. Eram conhecidas como Fairchildren. Gordon Moore e Robert Noyce deixaram a Fairchild e fundaram a Intel em 1968. Eles tinham o próprio dinheiro, mas foram buscar investidores e procuraram Arthur Rock, que era conhecido como o primeiro investidor de venture capital, modelo que se consolidou no Vale do Silício. Em 30 minutos, ele conseguiu US$ 50 milhões.

E a influência da contracultura na indústria da tecnologia?

Foi uma influência de longo prazo, durou por muitas gerações. Porque a maioria das pessoas que participaram do movimento, inclusive eu e todos os meus amigos, fomos apresentados de forma rude à política real, à ganância das companhias. A contracultura era uma forma de fugir disso, nos vestir, pensar da forma que queríamos, e isso se refletia nas empresas. No início da década de 1970, Nolan Bushnell fundou a Atari, uma empresa de videogames. Bushnell e muitos dos funcionários eram um bando de hippies. Eles começavam a manhã com um café e um baseado, bebiam cerveja na sala de reunião.

Steve Jobs e Steve Wozniak (cofundadores da Apple) eram subproduto da contracultura. Jobs era um visionário, desde aquela época, e pensava que se as pessoas pudessem ter seus próprios computadores, o governo não teria seu imenso poder sobre elas. Então, o computador pessoal foi uma invenção da contracultura de uma bando de hippies nerds.

O Globo

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