Edifícios e espaços urbanos deconstruídos são parte importante da produção arquitetônica atual. Ao contrário do Modernismo, o Deconstrutivismo não tem uma base teórica sólida que o apóie. Phillip Johnson, curador da primeira exposição da Arquitetura Deconstrutivista em 1988, Nova York, observa no catálogo da mostra a falta desta base. Este trabalho não pretende resolver esta ausência, mas pode contribuir para a construção dos seus pressupostos teóricos ao tentar contextualizar historicamente o Deconstrutivismo.
Um movimento arquitetônico para ser consistente deve ter, além de projetos, uma interpretação do passado, uma critica do presente e uma teoria que o justifique, já que teoria, história, critica e propostas concretas não surgem necessariamente nesta ordem. Teorias podem ser elaboradas a posteriori. Por exemplo, no Modernismo, o Plano Voisin surgiu antes do livro L’ Urbanisme que o apoia, ambos de autoria de Le Corbusier. O presente trabalho trata apenas das relações do Deconstrutivismo com o passado. Quais são seus precedentes? Em que momento histórico surgiram? E por quê.
É bom que se diga que estamos em um momento histórico, a pós-modernidade, onde sabemos que não podemos prever todo o futuro nem saber todo o passado. Antigamente, pela religião, sabíamos tudo deles. No século XX sabíamos com certeza “científica” como foi o passado e como seria o futuro, sua organização social e sua arquitetura. O futuro e o passado eram então totalmente controlados por aquele presente.
Paradoxalmente nunca tivemos tanta intimidade com o passado e o futuro. Passado, presente e futuro se dissolvem, se entrelaçam. Uma pequena amostra disso é a “Inscrição Atrasada” (Late Entry) de Robert Stern, nos anos 80, para o concurso da sede do Jornal Chicago Tribune, em Chicago, em 1930. Já tivemos, no PROURB em 2000, um atelier para elaborar projetos para o concurso de Brasília, em 1955, seguindo seu edital.
O passado tem tantas possibilidades quanto o futuro. É neste contexto que se desenvolve o que se segue.
Precedente: O Barroco
O Barroco, também denominado de Maneirismo, é uma deconstrução do estilo arquitetônico do Renascimento. Frontões triangulares são substituídos por frontões ondulantes e revoltos, plantas retangulares por plantas de formas diversas, quebradas, curvas. Os interiores são dourados, coloridos. A estatuária, então estática e bem comportada, é substituída por figuras dançantes, voadoras, com atitudes declamatórias.
O Barroco busca o infinito tanto para cima quanto para os lados. Telhados são como que rompidos para a visão do céu, como dizia Carlos Drummond de Andrade sobre as pinturas de Ataíde nos tetos das igrejas de Ouro Preto. Os eixos horizontais barrocos também querem ir até o infinito.
Em Versalhes observamos que a aléia principal que sai do eixo do palácio vai até o horizonte, na topografia plana do lugar.
Para uma pessoa em pé sobre solo plano (como é o caso do observador em Versalhes) o horizonte está muito mais próximo do que imaginamos, devido à curvatura da superfície terrestre. Está a cerca de apenas quatro quilômetros.
O eixo de Versalhes, de Le Nôtre, o Mall de Washington, de L’Enfant, como também o eixo monumental de Brasília, de Lucio Costa têm dimensões semelhantes e os três têm um pouco menos do que quatro quilômetros. Entretanto em Brasília a vista é quebrada pela estação rodoviária e o terreno não é exatamente plano. Com esses três infinitos quero apenas assinalar que há mais semelhanças entre elementos arquitetônicos e urbanísticos ao longo de estilos diversos do que podemos imaginar à primeira vista.
Quais são as semelhanças entre o Barroco e o Deconstrutivismo, além da forma revolta, quebrada, exuberante? O momento histórico tem semelhanças, no que se refere aos outros então novos meios de comunicação. Com a descoberta da imprensa as idéias religiosas e políticas que eram transmitidas ao povo principalmente pela Arquitetura, passaram a ser transmitida pelos livros de gravuras e textos, como descobriu Victor Hugo (1802-1885):
“Nossas leitoras irão perdoar-nos por nos determos um momento para procurar qual poderia ser o pensamento que se furtava sob aquelas palavras enigmáticas do arcediago: Isto matará aquilo. O livro matará o edifício.”
“Pelo que entendemos, este pensamento tinha duas faces. Era, antes de tudo, um pensamento clerical. Era o temor do sacerdote diante de um agente novo, a imprensa”
“A arquitetura é destronada. As letras de pedra de Orfeu sucedem-se as letras de chumbo de Gutenberg.”
“A partir da descoberta da imprensa, a arquitetura vai secando pouco a pouco, atrofia-se e desnuda-se. È esta a decadência que chamamos de renascimento”.
VICTOR HUGO apud FRANÇOISE CHOAY, O Urbanismo Pág. 324, 326 Martins Fontes S. Paulo 1998 (edição original 1965)
A arquitetura perde em muito sua função então principal, que é a de comunicar idéias. O que faz então a Arquitetura? A Arquitetura falida desta função passa a falar de seu próprio passado clássico, em Roma e na Grécia, com nostalgia e orgulho semelhantes às das famílias importantes, que falidas, contam apenas histórias do seu glorioso passado. É o Renascimento. Entretanto histórias repetidas cansam. Para recontá-las é necessário uma forma mais enfática.
Esta ênfase é o Barroco.
A ênfase era necessária por outra razão. Sem a imprensa a Reforma Protestante não seria economicamente viável. Igrejas simples e bíblias impressas eram mais baratas e eficazes para o crescimento de uma nova religião do que as gigantescas igrejas góticas, principalmente nas partes da Europa com menos analfabetismo.
Era premente uma posição da Igreja Católica frente à simplicidade do Protestantismo. Imagino uma reunião do Papa com seus cardeais: uns a favor de também serem simples, outros não. – “Não podemos aderir, porque isto implica em substituir nosso simples Catecismo pela complexa Bíblia. É uma questão ideológica. Temos é que criar templos ainda mais atraentes, mais estarrecedores. Fazer exatamente o oposto dos protestantes, enfatizar a diferença. Observo algumas ousadias de alguns arquitetos que mereceriam ser universalizadas. Fascinar mais do que convencer, esta deve ser a diretriz”, afirma o mais arguto dos cardeais.
O Barroco é o estilo da Contra-Reforma, que conteve em parte o avanço do Protestantismo na Europa.
É interessante notar que a arquitetura suplantada por um novo meio de comunicação ainda assim ajudou na luta contra novas idéias instrumentadas por este novo meio.
Precedente: O Helenismo
Mas há um precedente anterior ao Barroco. Segundo o arquiteto grego baseado em Paris Yannis Tsiommis , o Teatro, (então uma invenção nova) foi se tornando cada vez mais importante como meio de expressão do Mito Grego.
A reação da Arquitetura foi semelhante à sua reação no século XVI, que foi dar no Barroco: a Arquitetura Helenística.
“O desejo de uma arquitetura complexa, com suas concomitantes contradições, não é apenas uma reação à banalidade ou afetação da arquitetura corrente. É uma atitude comum nos períodos maneiristas: o século XVI na Itália ou o período Helenista na arte clássica, e também é um traço continuo visto em arquitetos tão diversos quanto Michelangelo, Palladio, Borromini, Vanbrugh, Hawksmoor, Soane, Ledoux, Butterfeeld, alguns arquitetos do Shingle Style, Furness, Sullivan, Lutyens, e recentemente Le Corbusier, Aalto, Khan e outros”.
ROBERT VENTURI, Complexidade e Contradição em arquitetura, Pág. 08 Martins Fontes S. Paulo 1995 (edição original 1966)
Sem duvida aqui se trata do Le Corbusier de Ronchamp (1954) e La Tourette (1960) e não o do Plano Voisin (1925) e de inúmeros outros projetos.
Agora
No inicio do século XX o movimento moderno afirma que as cidades existentes estavam todas erradas, e que deveriam ser demolidas e reconstruídas a partir do zero de acordo com suas teorias. Nisto se assemelhava ao Marxismo, que afirmava que as organizações sociais estavam todas erradas, e que deveriam ser extintas e construídas de novo, a partir do zero, segundo suas prescrições. Freud afirmava que a Mente Humana deveria ser revolvida até o inconsciente para se resolver as questões psicológicas. Viveríamos em cidades novas, sob uma nova ordem política, e uma nova mente.
Seria o céu!
Neste contexto a Arquitetura Moderna era entendida como a transmissora concreta de novas idéias, usadas por políticos, sejam democratas como Kubitschek no Brasil, sejam ditadores como Jimenez na Venezuela.
A Arquitetura volta a ter um conteúdo ideológico semelhante ao que teve na Idade Média. Victor Hugo, beirando a genialidade, preconiza esta Arquitetura do século XX: “O grande acontecimento que supõe o aparecimento de um arquiteto gênio poderá suceder no século XX.”
Os então novos meios contemporâneos de comunicação, o telégrafo, o radio, o telefone, os discos não eram visuais e, portanto, não concorriam.
Mas surge a Televisão. A Televisão aparece no pós-guerra nos Estados Unidos e no Brasil em 1952, embora por décadas com abrangência apenas local. A Arquitetura perde mais uma vez sua função ideológica, como aconteceu com a descoberta da Imprensa no século XVI ou do teatro na Antiguidade (a propósito, a pesquisar o que mais influenciou a queda do Muro de Berlim: se a magnífica arquitetura e urbanismo construído em Berlim Ocidental – como o INTERBAU e o IBA – ou a televisão ocidental, que era visto por Berlin Ocidental). Em seguida vem o computador pessoal, a internet e os programas eletrônicos que facilitam o desenho de formas complexas.
A partir dos anos sessenta surgem os “protestantes” (mas agora dentro da profissão arquitetônica). São arquitetos que crêem que a arquitetura deva ser concebida de forma mais cândida e teoricamente mais consistente. Postulam que não se pode esquecer a experiência humana de 4.000 anos de construção de casas e cidades. Propõem que as cidades devam ser tratadas delicadamente, com respeito ao existente e ao já feito, e com participação popular. Não acreditam no “céu na terra” do Modernismo, mas que a cidade mesmo sendo infernal tem trechos e espaços que “não são inferno” (como diz Ítalo Calvino no ultimo parágrafo do seu livro “Cidades Invisíveis”) os quais devem ser preservados e multiplicados.
Kevin Lynch, Johannes Habraken, Christopher Alexander, Colin Rowe, John Turner, o escritor Ítalo Calvino são alguns destes protestantes. Devido a John Turner até as favelas passaram a ser consideradas dignas de permanecer e serem restauradas.
Qual a reação do mainstream arquitetônico, do grande governo, da grande instituição, da grande empresa (as igrejas católicas atuais)? Deconstruir as formas modernistas. Os edifícios e os espaços urbanos serão emocionantes, revoltos, quebrados, coloridos, como os edifícios do Barroco. Fascinar mais do que convencer. Exuberância mais do que coerência.
Robert Venturi, embora não seja um deconstrutivista abre possibilidades deconstrutivistas no seu “Manifesto Suave” de 1966:
“Sou mais favorável à vitalidade desordenada do que à unidade óbvia”… “Os arquitetos já não podem deixar-se intimidar pela linguagem puritanamente moralista da Arquitetura Moderna Ortodoxa”… “Gosto mais dos elementos híbridos do que dos “puros”, mais dos que são fruto de acomodações do que dos “limpos”, distorcidos em vez dos “diretos”, ambíguos em vez de articulados, “perversos”…”
O arquiteto deconstrutivista Peter Eisenman conta que foi chamado a Tóquio para fazer um projeto para uma grande empresa. Na reunião ninguém falou para o que serviria o edifício. Lá pelas tantas ele perguntou e a resposta do presidente da empresa foi: – “Isto não é importante. O importante é que o edifício saia publicado nas grandes revistas de arquitetura de todo mundo, e estou certo que um projeto seu é capaz disso”.
No Rio de Janeiro os “protestantes” são mais atuantes do que os deconstrutivistas.
A reconstrução da favela do Brás de Pina, a preservação do Saara, o down-zoning em toda a cidade, os projetos Rio-Cidade e Favela-Bairro, inúmeros projetos de restauração de palácios, os tombamentos generalizados (e não apenas de obras primas do passado) projetos que respeitam o existente como a sede da Xerox no Porto, o Parque das Ruínas, o Museu do Telefone e tantos outros, o retrofit de diversos bons edifícios existentes e a mudança de parte dos equipamentos olímpicos para o Porto são projetos dos “protestantes”.
A propósito alguns me perguntam onde está a arquitetura atual do Rio de Janeiro. Eles se esquecem desses projetos que somam um imenso resultado, invisíveis para quem apenas vê fotos em revistas coloridas e não lê livros teóricos.
Porém temos que reconhecer que estão faltando no Rio arquitetos que “projetem para as revistas”, já que este tipo de projeto, como vimos acima, é importante. Sem eles ninguém iria a Petra, Ouro Preto ou Bilbao.
Resumo e Conclusão
A Arquitetura foi usada fortemente três vezes para transmitir idéias: Na Antiguidade Clássica, na Idade Média e do final Século XX até agora.
Deconstrutivismo, Barroco e Helenismo têm pontos em comum. Os tres surgem após a criação de meios de comunicação visual novos, o Teatro para o Helenismo, a Imprensa para o Barroco e a Televisão, o Computador e a Internet para o Deconstrutivismo. É uma reação mais emocional do que racional a esses novos e concorrentes meios de comunicação, ou em outras palavras, que tenta (e consegue) emocionar mais do que convencer. Os três deconstroem formas dos estilos que os precederam, a Arquitetura Grega Clássica, a Renascentista e a Modernista, respectivamente.
É uma curiosa coincidência que o Helenismo do imperialismo grego, tendo Alexandre o Grande à frente, construa cidades do Egito até quase a Índia; que o Barroco, quando Portugal e Espanha conquistam as Américas, construa igrejas do Norte da Califórnia e da Florida até a Terra do Fogo; e o Deconstrutivismo sarapinte o mundo quando os Estados Unidos se torna hegemônico após a queda do Muro de Berlim.
Paradoxalmente a arquitetura suplantada três vezes por outros meios de comunicação na Metrópole teve na Colônia, junto aos “bárbaros”, um papel de comunicador de idéias, de visões do mundo.
Pósfacio
O conjunto Pruitt Igoe foi escolhido em concurso público. O projeto vencedor de Yamasaki, um dos mais importantes arquitetos americanos, seguiu toda a teoria da Arquitetura Moderna. Foi um fracasso. Não conseguiu criar um espírito de lugar, não conseguiu facilitar o convívio, ensejou a criminalidade e se deteriorou rapidamente. Por isso foi implodido em 1972. A foto abaixo correu o mundo acadêmico e profissional. O critico de arquitetura Charles Jenks considera a data desta implosão como o fim da Arquitetura Moderna, suas teorias e seus sonhos. Observe a semelhança dos edifícios desta foto, segundos antes de caírem ao chão, com os edifícios deconstrutivistas mostrados anteriormente.
*Flavio Ferreira, doutor em Urbanismo e professor da pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ