Câmara, Senado e STF aproveitam o intervalo entre Copa e eleição para praticar o esporte favorito de Brasília: criar privilégios para poucos, pagos com o dinheiro de todos nós
Quem quiser entender por que o Brasil não sai do buraco não precisa fazer muito esforço. Basta olhar o que tem acontecido em Brasília nesta entressafra entre a desclassificação da Copa do Mundo e o início da campanha eleitoral.
Enquanto todos estavam de olho na manobra petista para tirar da cadeia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um movimento sorrateiro tomou conta do Senado, da Câmara e até do Supremo Tribunal Federal (STF), com o objetivo de garantir privilégios com que o Estado costuma agraciar grupos de interesses organizados. Só as medidas adotadas pelo Congresso nas últimas semanas têm um preço estimado em mais de R$ 100 bilhões no Orçamento.
O resultado de maior impacto é certamente a revogação pelo Congresso da proibição de reajustes aos servidores em 2019 e da criação de novos cargos públicos. O custo dos aumentos no ano que vem é avaliado em até R$ 17,5 bilhões. Embora a questão seja crítica para o equilíbrio orçamentário e a situação do funcionalismo seja privilegiada em comparação com o setor privado, a medida nem se compara a privilégios de outra natureza garantidos pelos parlamentares.
O mais absurdo foi a aprovação ontem, no Senado, da tabela que estabelece um valor mínimo para o frete de caminhões, uma excrescência do ponto de vista econômico. Trata-se de uma distorção artificial nos preços de mercado, cujo preço o país ainda pagará durante muito tempo na forma de inflação.
Ela só pode ser explicada pela chantagem exercida pelos caminhoneiros com a greve que paralisou o país há algumas semanas. De quebra, eles ainda receberam uma anistia para as sanções judiciais aplicadas durante a greve e – atenção! – até mesmo para multas de trânsito.
Mas só quem violou a lei terá o benefício. Se você tomou cuidado para trafegar na faixa, respeitar os limites de velocidade, não estacionar onde é proibido e ultrapassar apenas em local seguro, paciência. Você não passa de um trouxa no país dos espertos.
O mesmo princípio foi adotado na anistia àqueles que já detêm um privilégio: empresas que pagam menos imposto por estar classificadas, de acordo com seu faturamento, nos critérios que definem a adesão ao programa Simples Nacional. Em janeiro, 471 mil contribuintes haviam sido excluídos do programa por ter débitos pendentes. Desses, 158 mil regularizaram a situação e voltaram a ser aceitos.
Pois também foram otários. O Senado deu aos 313 mil restantes – aqueles que, mesmo desfrutando alíquotas privilegiadas, deixaram de pagar imposto – o direito a renegociar suas dívidas pelos mesmos critérios generosos do Refis aprovado no ano passado: desconto de até 90% nos juros, 70% nas multas e 100% nos encargos legais.
Na mesma votação, os senadores restabeleceram benefícios tributários aos produtores de refrigerante, antes extintos pelo governo para compensar as perdas na arrecadação com as benesses aos caminhoneiros. Pelo texto aprovado no Senado, houve redução de 20% para 4% na alíquota do IPI aplicada aos extratos usados na fabricação daquelas bebidas açucaradas, que tanto contribuem para ampliar a incidência de doenças ligadas à obesidade no Brasil.
Claro que a Câmara não poderia ficar atrás. No imbróglio do projeto de privatização das distribuidoras da Eletrobras, sob o manto da medida demagógica que isenta o pagamento de contas de luz de até 70 quilowatts-hora (teoricamente, destinadas à população de renda baixa), foi inserido mais um jabuti numa árvore já carregada: as distribuidoras poderão repassar à tarifa as perdas com furto de energia.
Isso mesmo. Não apenas a conta daqueles que usam pouco será dividida entre todos os demais. Também a conta daqueles que roubam energia será repassada a quem paga. Eis de novo em ação o mecanismo clássico de socialização das perdas – uma nova distorção nos preços de mercado –, sob o pretexto de ajudar os pobres (o furto de luz é endêmico em favelas). Trata-se de um incentivo a quem usa energia furtada.
Mas nossos deputados não se cansam. Numa votação da comissão que rediscute as agências reguladores, inseriram um penduricalho que volta a permitir a contratação de parentes e aliados em estatais, vetada pela Lei das Estatais de 2016 – uma das poucas medidas moralizadoras tomadas pelo Congresso no esteio da Operação Lava Jato. O tema nem precisou ir a plenário. Aprovado na comissão, segue agora ao Senado.
Para completar o festival de privilégios que assola o país, a ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, aproveitou seu plantão nas férias para deferir ontem duas liminares que garantem o pagamento de pensões às filhas solteiras de militares maiores de 21 anos. A decisão revoga uma decisão do Tribunal de Contas da União que, depois de verificar fraudes disseminadas e o pagamento de valores absurdos, determinava o cancelamento das pensões.
A valer o exemplo da liminar do ministro Luiz Fux que garante há quase quatro anos o pagamento de auxílio-moradia de R$ 4.300 a todos os juízes (e, por tabela, a procuradores) – a um custo anual estimado em R$ 1 bilhão aos cofres públicos –, as solteironas podem agora ficar tranquilas em relação a seu privilégio. É difícil acreditar que a liminar seja examinada pelo plenário num futuro próximo ou distante.
Os economistas Zeina Latif e Marcos Lisboa criaram a expressão “país da meia-entrada” para descrever a barafunda de privilégios concedidos pelo Estado a grupos de toda sorte capazes de exercer pressão em Brasília – pagos pelos impostos de todos os demais. É um problema aparentemente incurável de nossa sociedade, ainda mais insidioso e mais caro que a corrupção.
G1