Pré-candidato à Presidência e sua família foram vigiados pelo órgão da ditadura
Por Juliana Dal Piva
Quando o então capitão Jair Messias Bolsonaro escreveu o artigo “O salário está baixo”, no início de setembro de 1986, ele sabia que estava cruzando a fronteira da hierarquia e da disciplina na carreira militar. Quem fala pela tropa é só o comandante. Assim, no próprio texto, Bolsonaro já admitia que a decisão de reclamar sobre os salários dos cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) poderia deixar sua carreira “seriamente ameaçada”. Ele só não sabia que ele e sua família seriam espionados ao longo de anos por agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI) do mesmo modo como diversas lideranças de esquerda ainda eram vigiados, mesmo depois do fim da ditadura. Mais que isso. Seu artigo seria usado por partidos como PCB e PCdoB para mobilizar suas bases contra o Exército.
É o que mostram diferentes informes produzidos pelo órgão e consolidados em um dossiê de 37 páginas finalizado em novembro de 1989. Os documentos do SNI integram o acervo do Arquivo Nacional e estão disponíveis para consulta pública desde 2012. Classificado como “secreto”, o prontuário 097160-08 documentou diversos momentos da vida de Bolsonaro entre 1986, quando o artigo foi publicado, até julho de 1989, quando ele já era vereador e não integrava mais as Forças Armadas. São diversos informes enviados por telex ao SNI.
O primeiro registro é justamente sobre o artigo, logo em seguida, no mesmo dia, foi anotado o conteúdo de um telex do CML relatando como havia repercutido na tropa a publicação do artigo de Bolsonaro. O órgão afirmava ao SNI que a recepção era favorável e que na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) chegou a ser marcada uma reunião de oficiais sobre o assunto, proibida, posteriormente, pelo comandante. Dias depois, em 10 de setembro de 1986, outro telex do CML registrava que a então mulher de Bolsonaro, Rogéria Nantes, tinha concedido uma entrevista a Veja.
Um mês depois, em outubro de 1986, um informe do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) descreveu que “os comitês central e regional do PCB e do PCdoB emitiram instruções no sentido de que seus militantes explorassem ao máximo o descontentamento salarial dos militares” a partir do artigo de Bolsonaro.
Na ocasião, o artigo resultou em 15 dias de prisão para o capitão e, ao mesmo tempo, o SNI monitorava a repercussão daquele artigo em diferentes quartéis. Por isso, naquele ano a maior parte das anotações foi sobre a repercussão do texto. Mas o monitoramento seguiu e, um ano depois, em outubro de 1987, Bolsonaro voltou a aparecer na revista em uma reportagem na qual contava sobre um plano para colocar bombas em quartéis. Esse episódio teve mais consequências para o capitão.
No dossiê é mencionado um estudo produzido no Comando do Exército, em 16 de novembro de 1987, que considerou “que as averiguações realizadas não conseguiram elidir a dúvida que paira sobre a conduta do nominado (Bolsonaro). Embora não existam elementos para a abertura de IPM (indícios de crime militar)”. Ele negou que tenha concedido entrevista, mas não convenceu os superiores. Assim, o comando sugeriu a abertura de um Conselho de Justificação, espécie de inquérito.
O dossiê mostra que o SNI esteve o tempo todo no encalço acessando os depoimentos e documentos do processo antes da análise final dos três oficiais que o julgaram. Em 30 de dezembro de 1987, o CML remeteu ao SNI o conteúdo do depoimento de Cassia Maria, repórter que fez a matéria sobre o plano das bombas, no conselho e os documentos que ela apresentou. Ela entregou manuscritos de cinco mulheres de militares. “Segundo a repórter, cinco esposas de oficiais da Esao foram procurá-la para fins de publicação. Foram levantadas como possíveis signatárias D. Licia (Esposa do Capitão Fábio) e D. Rogeria (Esposa do Nominado)”, informa a anotação.
Em outro momento, durante o julgamento, mas já em fevereiro de 1988, o dossiê registra trechos do depoimento de Bolsonaro ao conselho. “No dia 12 de janeiro de 1988, ao ser reinquirido, confirmou suas declarações de próprio punho, prestadas em 25 de outubro de 1987, acrescentando que “quando se referiu a imprensa, não podia esperar que a Revista Veja publicasse um assunto tão fantástico”.
Ele foi condenado pelo conselho, mas absolvido no STM. Bolsonaro nega que tenha pensado no plano e, procurado, não quis se manifestar.
O SNI, porém, não parou de vigiá-lo após a decisão do tribunal. Nas páginas constam anotações de que ele ameaçava processar o ministro Leônidas Pires, comandante do Exército, dos encontros dele com o ex-presidente João Figueiredo e, além dos detalhes de sua campanha para vereador meses depois, já na reserva do Exército.Os informes incluíam até quem frequentava sua casa, inclusive, no seu aniversário. A última anotação foi em julho de 1989.
Nesse período, o chefe do SNI era o general Ivan de Souza Mendes, último militar a comandar o órgão, que foi extinto no governo Collor, em 1991.