Com o crescimento do cinema pernambucano, que cada vez mais produz filmes e se destaca em eventos nacionais e internacionais, ocorre também o fortalecimento do mercado interno: começam a surgir mais festivais, com o intuito de difundir o cinema feito em Pernambuco, no Brasil e no mundo.
Neste mês, dois grandes eventos ocorrem no Estado: a 4ª edição da Mostra Pajeú de Cinema, que segue neste domingo (20) e no dia 26 em Afogados da Ingazeira, e a 22ª edição do Cine PE – Festival do Audiovisual, que apresentará seis longas e 24 curtas-metragens entre os dias 29 de maio e 4 de junho, no Cinema São Luiz. Em abril, o Curta Taquary, outro festival tradicional no calendário do Estado, chegou à 11ª edição; no segundo semestre, o Janela Internacional de Cinema do Recife também chega ao 11º ano de vida.
Mesmo operando com diretrizes similares, esses festivais possuem características próprias e marcas únicas em seus perfis. Essa é a função da curadoria de cinema: através da seleção de curtas e longas-metragens, além de diferentes escolhas em torno do evento, moldar a percepção sobre o festival, sugerindo padrões e qualidades específicas.
“Antes mesmo de o evento terminar o curador começa a pensar a próxima edição”, diz André Dib, um dos responsáveis pela Mostra Pajeú. “É um trabalho para o ano todo, principalmente se não se quer ficar restrito apenas aos filmes inscritos. É preciso circular em outros festivais, conhecer os realizadores, fazer contatos, saber quais discussões e ideias estão em pauta. Assim, quando chegam os filmes inscritos, existe um olhar já apurado, em busca de um recorte que contemple estas questões, em sintonia com o universo de filmes e o perfil do festival”, destaca.
O início do Cine PE é apenas mais uma etapa no calendário do evento. “Quando termina uma edição, fazemos as prestações de contas, agradecemos aos patrocinadores, devolvemos filmes”, lista Sandra Bertini, diretora do evento. “Paralelamente, começamos a pensar a próxima edição, colocando o projeto na Lei Rouanet, organizando um projeto comercial para apresentar aos potenciais patrocinadores, organizamos um ambiente virtual para as inscrições, escolhemos curadores”, detalha.
Cada escolha é um direcionamento estético e conceitual. “Foram mais de 500 inscrições. A gente foi vendo e apontando quais se destacavam. Começamos em novembro. Em abril finalizamos”, explica Edu Fernandes, que fez a curadoria do Cine PE com Edina Fujii e Danilo Calazans. “A gente tem que ter em mente que trabalha para o festival, não para os filmes. A gente tem que pensar o que é melhor para o evento”, diz. “Tinha filmes bons, mas com temáticas semelhantes. Então cortamos filmes parecidos, em nome de uma diversidade”, detalha.
Ano passado, o Cine PE enfrentou problemas ligados à curadoria: a seleção de filmes alinhados a uma política conservadora fez com que sete cineastas anunciassem desligamento do evento, depois da programação ter sido divulgada. Neste ano, a programação é guiada a partir da diversidade. “São vários temas. A gente quis fazer um festival plural, com cineastas de gerações diferentes, estéticas diferentes, para trazer debates interessantes, que tentassem abraçar a produção brasileira do modo mais amplo possível”, explica Edu.
Bastidores: reflexões e escolhas
A seleção de filmes para compor a programação, um processo de imersão que com o tempo tende a definir o perfil de um festival e suas características mais marcantes, envolve diferentes etapas. “Busco visitar alguns festivais ao longo do ano, mas nem sempre é possível. Festivais são fóruns e as questões correntes estão circulando nos corredores. É sempre energizante estar onde se pensa e se vive o estado da arte – quando não dá, é preciso dar um jeito de sentir as vibrações”, opina Luís Fernando Moura, do Janela.
“Neste sentido, pode soar um pouco cafona, mas sinto genuinamente que são os filmes que me procuram. É preciso estar disposto, atento e correr atrás dos filmes que procuram a sua sensibilidade como curador, além de leitura, de Twitter a livro de cinema, e conversa com gente também atenta, sobretudo a cinema, arte e política contemporânea”, argumenta Luís.
A grande quantidade de filmes recebidos para análise, o tempo limitado para vê-los e a organização deles dentro de uma programação são alguns dos desafios da curadoria. “Em média, recebemos 400 filmes por ano. Além dos inscritos, acontecem convites para curtas e outros que são vistos em outros festivais”, explica Alexandre Soares, do Curta Taquary. “Sabendo o perfil do festival, o desafio de um curador é montar uma lista diversa entre tantos filmes bons. Separamos os filmes que dialogam e que possam se conectar com o público”, ressalta.
Um festival cria elos com o público – e esses laços indicam a maneira como o evento é percebido. “O principal desafio é o de estabelecer um discurso próprio a partir dos filmes”, diz André Dib. “Para isso é preciso um olhar, uma forma própria de estar entre obra e público, observando as duas pontas do processo criativo, da produção à recepção, do artista ao público. Para isso é preciso mais do que amar o cinema, mas de uma percepção e um questionamento de si, do mundo e do outro”, reflete.
Luiz Joaquim, crítico, curador e professor de cinema – Crédito: Arthur de Souza/Folha de Pernambuco
Cinefilia no Recife: Cine PE e Janela
O Cine PE surgiu em 1997, em um momento importante do processo de retomada do cinema brasileiro. “O Cine PE é o festival de cinema mais antigo de Pernambuco. São 21 edições ininterruptas. Apoiamos a difusão do cinema nacional. Colocamos Pernambuco no circuito dos mais importantes festivais nacionais”, lembra Sandra.
“O Cine PE foi fundamental para o Recife. Lembro-me do diretor Leonardo Lacca, ao apresentar seu primeiro curta (‘Ventilador‘) no Cine PE, agradecendo no palco do festival pela fonte de estímulo para que ele fizesse aquele filme”, diz Luiz Joaquim, que além de jornalista e professor de cinema também atuou como curador do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco entre 2001 e 2017.
“Até por volta de 2010, a marca do Cine PE foi inegavelmente seu grande público, que ultrapassava, diariamente, o limite de 2.400 poltronas do Teatro Guararapes. Era impressionante. Mas essa estrutura tinha um apoio, talvez forte demais, na presença de figuras celebrativas do cinema brasileiro. No passar dos anos, o cinema pernambucano ganhou consistência e consciência de sua boa qualidade. Uma qualidade que não era afinada ao que o festival parecia colocar como prioridade”, opina.
É nesse contexto estreou o Janela de Cinema, criado em 2008 pelo cineasta Kleber Mendonça Filho. “O Janela surgiu com uma comunicação mais próxima de uma nova geração de espectadores. Começou modesto, mas percebeu um espaço interessante com a exibição de clássicos, e tem hoje nessa moeda (clássicos) um grande trunfo, mas sem perder a sintonia com o que há de mais importante no cinema contemporâneo mundial”, argumenta Luiz, que como jornalista fez a cobertura dos dois eventos.
Entre as características do Janela está a maneira como insere o Recife e sua história de cinefilia no conceito do festival. “Se reclama imensa responsabilidade política dos festivais pelo que eles exibem. Talvez tenhamos, estamos descobrindo isso junto ao público e à cinefilia”, diz Luís. “Festivais coelaboram uma história (de cinema, de cidade) e promovem experiência coletiva. No caso do Janela, isso se dá em cinemas importantes, ligados à experiência de cinefilia e de habitação do espaço público do Recife”, destaca.
Ampliando fronteiras: Pajeú e Taquary
Enquanto o Cine PE e o Janela de Cinema movimentam o Recife, levando curtas e longas-metragens ao Cinema São Luiz, a Mostra Pajeú e o Curta Taquary expandem a fronteira do cinema para regiões que não costumam fazer parte do circuito exibidor. São eventos que não apenas levam filmes contemporâneos e intrigantes da produção nacional, como também oficinas e ações formativas, como estratégia para intensificar a cadeia produtiva da região.
“São municípios pequenos que não têm vivência cinematográfica. Nunca tiveram salas de exibição”, diz William Tenório, da Mostra Pajeú, que ocorre em Afogados da Ingazeira, Iguaracy e Ingazeira, no Sertão de Pernambuco. “A gente escolheu elas por causa dessa carência de cinema. A proposta é que no futuro o festival chegue a todos os 17 municípios do Pajeú”, destaca.
“A ideia é apresentar ao público que não tem o hábito de ir ao cinema obras que possam estimular uma reflexão sobre nosso País, nossa cultura, nosso povo e nossas tradições”, explica Alexandre Soares, do Curta Taquary, que ocorre em Taquaritinga do Norte, no Agreste pernambucano. É um evento que proporciona uma experiência audiovisual com ênfase nas produções do Nordeste. “Assim, além da identificação com a plateia, conseguimos fortificar a cadeira produtiva de uma região”, destaca.
Através da Mostra Pajeú, cinéfilos começaram a trabalhar no mercado audiovisual. “No primeiro ano, agradamos duas pessoas que hoje trabalham com a gente: Gilmara Adjane e Richard Soares. Ela começou a propor filmes no Funcultura e ele se tornou o projecionista da Mostra”, lembra William. “Neste ano, a gente descobriu uma menina de 12 ou 13 anos, Vitória, que disse que o sonho dela é ser fotógrafa. São relatos como esses que fortalecem a cadeia produtiva. A gente tem cinéfilos por aqui, e a Mostra é meio que um agregador”, ressalta.
“Dentro de nossas programações realizamos exibições itinerantes em todas as escolas municipais de Taquaritinga do Norte, e para esse público específico (infanto-juvenil), buscamos apresentar filmes com temas voltados ao meio escolar, a exemplo de bullying, auto-aceitação, preconceito e acessibilidade“, comenta Alexandre. “Nessas sessões sempre nos deparamos com declarações emocionantes e conseguimos ter um retorno bem positivo”, argumenta.