Os segredos de Getúlio Vargas

Os segredos de Getúlio Vargas

Getúlio Vargas com a filha Alzira nos anos 1930

Por Luís Antônio Giron

“Vai, rapariguinha, eu estou bem acompanhado e no momento não estou precisando de você.” Era assim que Getúlio Dornelles Vargas ralhava com a filha, Alzira Vargas. Ela trabalhava como auxiliar de gabinete do Presidente da República. Dizia fazê-lo por amor ao pai. No último mandato de Getúlio – entre 1951 e 1954 –, acompanhou-o dia e noite. Sua devoção lhe permitia dizer verdades que o presidente não ouvia de mais ninguém senão dela. Na prática, Alzirinha dizia tudo o que pensava, e chegava a tratar o pai pelo informal “tu”. Certo dia, irritada com a teimosia pouco diplomática dele, irrompeu no gabinete e criticou: “Eu te considero um dos piores políticos que jamais conheci. Não tens paciência para as intriguinhas normais, ficas indócil quando a administração do país é prejudicada pela política e te rebelas contra a burocracia.” Getúlio respondeu: “Acho que tu tens um pouco de razão”.

    
HERDEIRA Com a neta Celina (c. 1946-1947). Alzira e Celina organizaram a história do político

O episódio faz parte das memórias de Alzira Vargas Amaral Peixoto. Uma parte delas se converteu em um best-seller, o livro “Getúlio Vargas, meu pai”, lançado em 1960. A outra permaneceu inédita. O livro é reconhecido como clássico do memorialismo político. A narrativa passional de uma filha devotada ao pai poderoso acrescentou drama a uma tragédia: o suicídio do presidente aos 72 anos com um tiro no coração na madrugada de 24 de agosto de 1954. Alzira se sentiu traída porque o pai escondeu dela o gesto extremo e a “Carta Testamento”, que seria divulgada naquela manhã. Ele a havia dispensado com o costumeiro “vai, rapariguinha”.

Alzira nunca mais veria aquela madrugada acabar, e relembraria dela até morrer, aos 78 anos, em janeiro de 1992. Tornou-se detentora dos segredos do pai. Seu desejo era publicar um segundo volume para completar as memórias, já que o primeiro cobria até o ataque dos integralistas ao Palácio Guanabara em 1938, no início do Estado Novo (1937-1945). Queria avançar pela Segunda Guerra, passando pela deposição, o exílio e a volta de Getúlio. Mas não conclui o projeto. Os textos inéditos são agora reunidos e incluídos na segunda parte da nova edição de “Getúlio Vargas, meu Pai”, lançado pela Companhia das Letras. O caráter fragmentário do material não impede que ele traga revelações e detalhes ignorados sobre o governo e a intimidade de Getúlio e sua relação com Alzira, a quem considerava a sua “segunda consciência”.

PESQUISA Celina Vargas (e o busto de Getúlio) editou as memórias e os manuscritos de Alzira, como o de 1938, sobre o Estado Novo

INTRIGAS

“Getúlio foi a sua paixão”, diz a socióloga Celina Vargas do Amaral Peixoto, filha única de Alzira e do político Ernani do Amaral Peixoto e neta de Getúlio. “Adorava escrever e vivia às voltas com a papelada do pai.” Segundo Celina, Alzira recebia os brasilianistas à mesa da sala de jantar, onde espalhava os documentos para comentá-los. O material foi doado à Fundação Getúlio Vargas e constituiu o primeiro acervo do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdo/FGV). Celina organizou o Cpdo e contou com a ajuda de Alzira. Nos últimos anos, Celina se ocupou em organizar a pilha de escritos de Alzira, folhas soltas e dezenas de blocos de rascunho escritos com letra graúda à tinta vermelha de caneta esferográfica.

“Minha mãe tinha prazer em escrever”, diz Celina. “Ela queria tirar do texto aquilo que chamava de ‘alzirices’.” Ou seja, sua petulância e rebeldia, sua visão nada glamurosa da vida palaciana. “Eu dizia a ela que as ‘alzirices’ é que davam graça ao texto.” A organização dos textos segue o critério cronológico e abarca os 24 anos que vão do Estado Novo à morte de Getúlio. “Juntei fragmentos para formar um relato”, afirma Celina. “Minha mãe foi criada como uma gaúcha tradicional, para cozinhar e cuidar das crianças. Aos poucos, foi mostrando um caráter forte, formou-se e adquiriu uma visão do processo político.”
Celina tinha 10 anos quando o avô se suicidou e lembra da noite de 23 de agosto em que ela e a prima foram levadas pelos pais de Niterói para pernoitar no apartamento de Getúlio no Rio, pois a família estava ameaçada de detenção. “Lembro-me de tudo. A atmosfera era ameaçadora, mas não senti medo”, conta. “Isso porque minha mãe me passou a lição que havia aprendido com os pais. Costumava dizer: ‘Dos covardes a história não fala. Vamos estudar e trabalhar. Coragem!’”

Alzira começou a trabalhar com o pai em 1932, como arquivista. Em 1937, quando concluía o curso de Direito, foi nomeada auxiliar de gabinete. Casou-se em 1939 com o oficial da Marinha Ernani do Amaral Peixoto, ajudante de ordens da Presidência. O casal morou em Washington, hospedando-se na residência do embaixador Oswaldo Aranha, amigo da família. Foi então que Alzira se encontrou com o presidente americano Franklin Roosevelt e se tornou emissária e tradutora de Getúlio, que não sabia inglês – lia francês, espanhol e italiano.

“Comecei a penetrar nos secretos meandros do mundo político”, escreve Alzira. Ela tomou contato com as intrigas e tentativas de corrompê-la com dinheiro, presentes e cantadas. Há revelações sobre a história e sobre a intimidade. Entre as históricas, mostra como o pai desarticulou as tentativas de golpe comunista e integralista, em 1935 e 1938 – pretextos para a decretação do Estado Novo. Nessa fase, Getúlio tentou servir trabalhadores e empresários. Ele foi chamado, como ela lembra, de “o pai dos pobres e a mãe dos ricos”. Recorda-se de um encontro de Getúlio com um grupo de empresários em 1935. O ditador discutiu a futura Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas só ouviu deles reclamações sobre impostos e obrigações. Saiu furioso da reunião. No carro, ao lado de Amaral Peixoto, comentou: “Burgueses burros! Estou tentando salvá-los e eles não entenderam.”

Sobre a entrada do Brasil na Segunda Guerra com os Aliados, Alzira mostra que Getúlio era disputado pelos “germanófilos” e pelos “entreguistas” americanófilos. Segundo ela, Getúlio simpatizava com os americanos e declarou guerra a Hitler em agosto 1942. No início do ano, organizou reuniões diplomáticas com os americanos, onde Alzira exerceu um papel essencial. Getúlio a instruía a municiar os jantares de gala com dois itens que os americanos consideravam essenciais: muita bebida e mulher bonita.

UM TROTE
Entre os erros que ela aponta no pai, está o fato de ele ter enviado a militante Olga Benário aos nazistas e ter deixado que seu irmão Benjamin formasse a Guarda Pessoal da Presidência, composta de capangas gaúchos desgrenhados, a quem ela apelidou ironicamente de “anjinhos”. Foram eles os responsáveis pelo atentado contra o maior opositor do governo, o jornalista Carlos Lacerda, que vitimou seu guarda-costas, o major Rubens Vaz, em 5 de agosto de 1954 – “uma das maiores asneiras do século”, segundo ela. A “asneira” precipitou a crise institucional e uma conspiração que ela chama de “golpe de gabinete”.

Alzira também se debruça sobre as tragédias familiares e o caráter do pai, capaz de se calar, de se irritar e até de pregar peças. Um dia ela encontrou seu escritório revirado: a máquina de escrever debaixo da mesa e os papéis desorganizados. Descobriu que o trote era do “maroto” Getúlio. Alzira se comove, como quando viu o pai chorar pela morte do filho Getulinho, em 1942, aos 24 anos. Sua reação à tragédia foi perguntar ao médico sobre como a alma saía do corpo – logo ele, um homem “construtivamente cético”. Ela detalha o acidente de carro que Getúlio sofreu em maio de 1942. Com a perna fraturada, ele ficou internado por meses. Boatos surgiram: ele teria morrido e Amaral Peixoto e Alzira agora governavam o Brasil. Getúlio então se fez fotografar recebendo visitas de crianças.

“Este é o livro de minha saudade”, afirma Alzira. “É a história maravilhosa de um homem só. Nasceu só, viveu só entre milhões, morreu só doando tudo o que tinha”. Uma história que ela escreveu como uma espécie de libelo contra a forma de fazer política no Brasil.

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