O escritor Marcelo Rubens Paiva emocionou a plateia da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) ao evocar o papel de sua mãe, Eunice Paiva, na luta para descobrir o paradeiro do pai, o ex-deputado Rubens Paiva, desparecido em 1971 depois de ser preso pelo DOI-Codi.
Marcelo teve que fazer várias pausas ao ler o texto “Trabalhando o sal”, publicado em seu blog no “Estadão” em fevereiro deste ano. “Quem combateu a ditadura foi a minha mãe, não foi meu pai. Assim como ela, outras mulheres tentaram honrar o nome de seus queridos mortos barbaramente”, disse o escritor.
A mesa, “Memórias do Cárcere: 50 Anos do Golpe”, foi aberta com a audição de um discurso do deputado Rubens Paiva (PTB-SP) no rádio, realizado em 1º de abril de 64, pedindo a distribuição de riqueza e defendendo o governo João Goulart. “Dizer não aos golpistas, que devem ser repelidos. Em nome da legalidade”. O áudio foi descoberto este ano, na rádio Nacional. Por esse áudio, ele vai receber o prêmio Vladimir Herzog de jornalismo.
Além de Marcelo Rubens Paiva, participaram da conversa o escritor Bernardo Kucinski e o economista Persido Arida. A antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, mediadora do evento, observou: “A memória sobre o golpe ainda incomoda os brasileiros. O silêncio sobre os militares e civis responsáveis por uma complexa estrutura de repressão, que fez da tortura uma política oficial de Estado.”
A leitura de Marcelo tocou o público ao retomar um texto em que o escritor e jornalista Antônio Callado relatava o encontro com Eunice Paiva em 1971, pouco depois de ela ser solta da prisão e antes de saber do desaparecimento do marido. Em uma das passagens mais fortes, o escritor leu:
“Por anos, fotógrafos nos queriam tristes. Deflagramos uma batalha contra o pieguismo da imprensa. Sim, éramos a família modelo vítima da ditadura, mas não faríamos o papelão de sairmos tristes nas fotos. Nosso inimigo não iria nos derrubar. Guerra é guerra. Minha mãe deu o tom: a família Rubens Paiva não chora em frente às câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima. A família Rubens Paiva não é a única vítima da ditadura. Esteve em guerra contra ela desde o primeiro dia. O País é a maior vítima. O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva. Nossa luta não tem fim. Precisamos estar bronzeados e saudáveis para a contraofensiva. A angústia, as lágrimas, o ódio, apenas entre quatro paredes.”
Falando para o público da Flip, explicou: “Minha mãe foi presa. Ela era uma dondoca, ia à praia, jogava vôlei com a Marieta Severo e não sabia de nada. Depois de 13 dias ela foi solta e se viu sozinha. Começou a peitar. Procurou ministros e deu entrevistas a correspondentes internacionais. E foi a partir de 1971 que o governo americano foi obrigado a rever sua postura em relação ao regime”, contou Marcelo, que está escrevendo um livro sobre a mãe.
Ao se referir a emoção que deixou transparecer durante a leitura, Marcelo disse que está tocado pelo nascimento de seu primeiro filho, ocorrido há cinco meses, e pela doença da mãe, que está sofrendo de Alzheimer.
Diário da Flip: Cenas da festa literária de Paraty por Orlando Pedroso30 fotos
Desaparecimentos
Sobre os desaparecimentos políticos, que deixaram muitos mortes sem corpos (o atestado de óbito de Rubens Paiva foi emitido apenas em 1996), Marcelo afirmou que os desaparecimentos foram “uma tortura aos familiares e uma tortura à história”.
“Quando meu pai desapareceu, não se havia notícia dessa possibilidade de algum ser preso e desaparecer”, disse, lembrando que o Brasil foi um dos primeiros países da América Latina a adotar a tática de eliminar opositores do governo. “Não havia com quem conversar. Não haviam órgãos da sociedade civil organizada nem órgãos legais, a imprensa estava sob forte censura. As informações eram passadas geralmente por amigos de amigos que ficavam sabendo de algo em Brasília. A sociedade não tinha ideia do que estava acontecendo. Minha mãe costumava dizer que o desaparecimento era uma segunda tortura”.
O escritor também lembrou dos entraves burocráticos que a família de um desaparecido enfrenta: sem ter em mãos seu atestado de óbito, são impedidos de receber seguros de vida, movimentar aplicações financeiras, vender propriedades. “No desaparecimento, há também entraves burocráticos que continuam te torturando eternamente. Mesmo que mudem a lei da anistia, mesmo que tentem compensar. É uma tortura aos familiares e uma tortura à história”, afirmou.
Desconhecimento
Marcelo lamentou que há muito desconhecimento histórico sobre o período da ditadura. “Vou falar de um amigo, que não vai gostar. O Roger. Ele escreveu musicas ícones da campanha da Diretas Já, os versos ‘somos inútil, a gente não sabemos escolher presidente’. Hoje, ele acusa a Dilma de terrorista. Se até pessoas que participaram da redemocratização tem posições confusas, imagina as crianças da nova geração que moram na periferia das grandes cidades.”
O jornalista e agora escritor Bernardo Kucinski, que escreveu o romance “K” com base em memórias familiares do desaparecimento de sua irmã e cunhado, reforçou a opinião de que o trauma dos desaparecimentos extrapolam às famílias. “A família não pode ter seu luto, mas isso também deixa um trauma na sociedade, como se um demônio estivesse entre nós”, afirmou.
Ele relatou o contexto em que sua irmã desapareceu. “Os primeiros desaparecimentos foram esporádicos, muitas vezes resultado de um ‘acidente de trabalho’ na sala de tortura, como deve ter acontecido com o pai do Marcelo. Mas a partir de 1973 houve uma mudança na distribuição de forças, especialmente com as greves do ABC, e a cúpula militar resolveu fazer uma retirada estratégica, a abertura lenta, gradual e segura. E dentro dessa estratégia decidiram também eliminar os últimos elementos considerados perigosos. Minha irmã e meu cunhado foram mortos nesse contexto”.
Kucinski foi muito aplaudido ao observar que “infelizmente, a política de abertura lenta e gradual do regime militar teve sucesso absoluto. Substituíram uma ditadura militar por uma ditadura midiática”.
O terceiro participante da mesa, o economista Pérsio Arida, deu um outro ponto de vista sobre a questão: o de alguém que ficou desaparecido. Pérsio foi preso aos 18 anos, quando fazia parte da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares.
“Se você é preso e ninguém está sabendo, podem te matar a qualquer momento. Quando eu soube que meus pais sabiam onde eu estava, isso me deu uma sensação enorme de alívio. Não que meus pais tivessem alguma influência, mas porque haveria algum constrangimento com a minha morte”, relatou.