Um editor de biografias

Por Luiz Schwarcz  –   Diretor da Companhia das Letras

Trecho de texto originalmente publicado no blog da Companhia das Letras

  • ‘O pagamento à família de Garrincha justificado pela fragilidade das leis de defesa da liberdade de expressão foi indevido’

Falei recentemente com o Chico Buarque sobre o assunto das biografias. Como ele escreveu publicamente, utilizando-se de exemplos sensíveis à história da Companhia das Letras, “condenada” a pagar uma larga soma de indenização à família de Garrincha, preciso vir a público esclarecer minha posição e contar, pela primeira vez, a minha versão.

Quando o livro “Estrela solitária” estava para ser publicado, uma matéria foi veiculada no “Fantástico” chamando atenção para o livro. As filhas do Garrincha, que não haviam se manifestado até então, me procuraram, através de um advogado, e, sem ler uma página sequer do livro, demandaram pagamento de direitos e ameaçaram com um pedido de indenização.

O representante da família, a essas alturas, não falava em “imagem denegrida”, mas em “ajudar o Natal das meninas”. Como não aceitamos acordo — por julgarmos que a biografia enaltecia o jogador como o melhor de todos os tempos e tratava do alcoolismo, conhecido por todos, de maneira ética —, seguimos em frente com a publicação. A partir daí fomos processados, com a família exigindo o pagamento de direitos autorais — como se a vida de um antepassado pertencesse a seus herdeiros — e reclamando da imagem do jogador supostamente denegrida pelo livro, de cujos rendimentos gostariam de participar.

A partir daí, uma longa e custosa história se instaurou e, em segunda instância, o “Estrela solitária” foi retirado de circulação, sem que todas as etapas do julgamento estivessem concluídas — situação que só a nossa lei permite. Assim como permite que um juiz ameace “quebrar” uma editora, ao ter amplos poderes para arbitrar a indenização. A biografia só voltou a circular mediante um volumoso acordo, e sem nenhuma condenação. Com o pagamento realizado, nem a capa ou muito menos o conteúdo voltou a preocupar as herdeiras. O fato é que a atual lei brasileira permite que se instaure um balcão de negócios, arbitrariedades e malversações.

Quem ajuda a moldar a vida e a cultura de um país tem, desde sempre, menor controle de sua vida pública. A defesa da privacidade no mundo contemporâneo deveria nos unir, mas o custo que a lei cobra é inaceitável, é muito pior.

Espero que um dia escritor e editor se juntem na defesa das duas causas: a da liberdade de expressão e a da privacidade possível no mundo atual. O Procure Saber escolheu o vilão errado e ofendeu os profissionais do livro ao defender a permissão apenas da publicação gratuita dos livros, apresentando editores e escritores como argentários e pilantras profissionais. Além do Chico, Gil e Caetano foram publicados com muita honra pela Companhia e me conhecem bem.

Agora, que o pagamento à família de Garrincha justificado pela fragilidade das leis de defesa da liberdade de expressão foi indevido, sem dúvida foi. E que divergências não abalam amizades como as que tenho com Chico e Caetano, é certeza e nunca esteve em discussão.

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