Mito supremo do cinema rural no Brasil, capaz de enfileirar um blockbuster atrás do outro numa carreira de 32 filmes, Amácio Mazzaropi (1912-1981) morreu aos 69 anos rodeado por folclores das mais variadas espécies. O repertório de causos a seu respeito vai de (supostas) aventuras sexuais com galãs estreantes a maquinações (nem sempre generosas com seus funcionários) como homem de negócios, passando a hipóteses improváveis acerca da dilapidação de sua fortuna, estimada por alguns em R$ 30 milhões e por outros em R$ 300 milhões, mas nunca devidamente quantificada.
A mais recorrente das lendas é que apenas com os habitantes de Taubaté — cidade paulista onde construiu casa, produtora (PAM Filmes) e um império comercial — seus longas-metragens já pagavam seu custo de produção. O que vinha do resto do país, portanto, era lucro. Muitas dessas histórias — as mais saborosas — são relembradas (e algumas delas comprovadas) no documentário “Mazzaropi”, primeiro longa-metragem do crítico Celso Sabadin, já finalizado e à espera de uma data de estreia.
Ao longo de quase três anos de trabalho, no qual entrevistou 25 pessoas, entre amigos e colegas do ator, diretor e produtor paulistano, Sabadin colheu depoimentos sobre rixas com o Cinema Novo, criações de modelos de negócio pioneiros para a América Latina e paqueras com atores iniciantes (depois famosos). Mais do que um exercício de nostalgia, com entrevistas de Hebe Camargo, Aguinaldo Rayol, Ary Toledo, Marly Marley e Ewerton de Castro, “Mazzaropi” é um estudo sobre como um artista foi capaz de mudar os parâmetros econômicos do cinema de seu país. Além de ter produzido 21 de seus longas e dirigido 14 deles, ele mesmo distribuía seus filmes e mandava funcionários de confiança país adentro, transportando as cópias e conferindo borderôs dos ingressos vendidos.
— Há um depoimento do já finado cineasta Gustavo Dahl, que presidiu a(distribuidora estatal) Embrafilme na época de Mazzaropi, em que ele fala de Amácio como um visionário. Ele foi o primeiro caso de um produtor e diretor no Brasil a fiscalizar pessoalmente o andamento de seus filmes no circuito. É Dahl quem diz: “Esse modelo só viria a ser repetido com ‘Tropa de elite 2’, do Padilha” — lembra Sabadin, de 54 anos.
Também paulistano, o diretor mostra como o sucesso do astro de “Jeca Tatu” (1959) acompanhou o progresso de industrialização do Brasil.
— Mazzaropi estabeleceu um elo entre o cinema brasileiro e as plateias a partir dos anos 1950, época de crescimento econômico e do boomindustrial de São Paulo. É uma época de êxodo rural enorme, na qual camponeses se mudam para as cidades para trabalhar na construção civil. Nesse momento, essas pessoas matam suas saudades do campo vendo os filmes de Mazzaropi, que criou uma relação de identificação ao difundir a figura do caipira. Tratado mal pela crítica, o cinema dele serviu para exorcizar a melancolia dos trabalhadores que construíram São Paulo — diz Sabadin, que ouviu críticos como Inácio Araújo para comentarem o desprezo da intelectualidade sobre o ator a partir do fim dos anos 1950, quando ele emplacou seus longas mais rentáveis.
Embora não haja uma aferição oficial, estima-se, por dados de jornais da época e de órgãos extintos, como o Instituto Nacional do Cinema (INC), que “Jeca Tatu” e “Casinha pequenina” (1963), os maiores sucessos de Mazzaropi, venderam oito milhões de ingressos cada. Há dois anos, o pesquisador João Carlos Rodrigues publicou na revista “Filme Cultura” (órgão de imprensa apoiado pelo Ministério da Cultura), uma lista de filmes nacionais, de 1970 em diante, vistos por mais de um milhão. Dela constam todos os dez últimos longas estrelados por Mazzaropi, dos quais o mais bem-sucedido, com 3,4 milhões de espectadores, foi “O Jeca macumbeiro”, de 1974.
— A maior contribuição de Mazzaropi à indústria foi ter revelado o mercado do interior — avalia João Carlos Rodrigues. — Além de grande ator, ele era um homem de negócios atento ao perfil do público do interior e fazia filmes sintonizados com as transformações desses espectadores. Fez, por exemplo, filmes sobre imigrantes estrangeiros residentes no Brasil, como “Portugal, minha saudade”, ciente de que as regiões do campo estavam cheias de portugueses, japoneses, italianos.
Até quem disputou com Mazzaropi a atenção do público brasileiro, como Renato Aragão, reconhece sua destreza comercial.
— Num cenário em que tudo favorecia os heróis estrangeiros, Mazzaropi, como empresário de cinema, mostrou seu valor inestimável na telona, com filmes inspiradores para a comédia nacional — elogia Aragão.
Para suas produções, Mazzaropi comprava os melhores equipamentos, mas pagava salários módicos a seus empregados.
— Colhi depoimentos de que ele era pão-duro, embora pagasse em dia. Há quem fale mal também do fato de ele não emprestar ou alugar seu estúdio para ninguém. Ao mesmo tempo, há quem reconheça uma sabedoria de mercado nesse gesto. Ele construiu os estúdios com dinheiro dele. Não haveria porque abri-los a outros. Em meio a depoimentos controversos, há quem veja nele um homem generoso e carente. Era importante ter todos os lados — diz Sabadin, que entrou no projeto a convite do produtor Moraci Du Val, cujo sonho era fazer uma ficção sobre Mazzaropi.
Moraci acabou saindo da produção depois que Sabadin o convenceu de que ficcionalizar a vida do ator demandaria um orçamento milionário e um cronograma espichado. Edu Felistoque acabou assumindo o posto de produtor, mas manteve o crítico na direção. Ao avaliar a porção mais afetiva dos depoimentos que colheu, Sabadin lembra que a maioria dos entrevistados afirma a homossexualidade de Mazzaropi, muitas vezes ignorada por seus biógrafos.
— Todos falam que ele era assumido e lidava bem com sua opção. Ele só não alardeava sua preferência porque seu público de interior era conservador e poderia rejeitá-lo — diz Sabadin.
Outra informação trazida pelo documentário envolve a revolta do eterno Jeca Tatu ao ler uma crítica negativa.
— Uma resenha de jornal reclamava que, num dos filmes dele, a câmera tremia duas vezes. Mazzaropi virou para David Cardoso e disse: “A câmera do Glauber Rocha treme o tempo todo e dizem que é arte. A minha treme e falam que é erro” — diz Sabadin, lembrando que, embora os estúdios de Mazzaropi tenham virado um museu em seu tributo, parte de seus bens continuam perdidos. — Há quem diga que ele foi roubado por funcionários e por advogados enquanto convalescia. Há uma história de que o diretor Pio Zamuner, seu grande colaborador, já falecido, foi proibido de entrar no quarto onde estava trancado, antes de morrer, pois havia advogados querendo manter seu patrimônio em sigilo. O mistério segue. Mas, pelo menos agora, com o passar dos anos, Mazzaropi virou cult.
Fonte: o globo.