- Author,Hernando Álvarez
- Role,BBC World Service
Há quase 30 anos, guardo em casa uma lista de obras clássicas que Gabriel García Márquez me fez, de próprio punho, numa tarde de abril de 1995.
A história de como consegui essa lista foi contada inúmeras vezes à minha família e amigos. É uma anedota que revela tanto a minha total ignorância quanto o carisma, a generosidade e a humildade do único escritor colombiano a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura.
Começa com uma pergunta, termina com a lista e inclui um delicioso sorvete.
O sorvete
“Maldito Cachaco, está claro em seus olhos que você adoraria tomar mais uma bola de sorvete, mas não consegue admitir”, desafiou-me Gabriel García Márquez com um misto de carinho e brincadeira.
E ele estava certo. Não só era delicioso, mas também, como ele me disse, era o sorvete que recebia de Fidel Castro todos os anos como presente de aniversário. Veio da famosa sorveteria Coppelia de Havana, que era a preferida do romancista que – para minha descrença – era meu anfitrião.
A primeira colher me foi oferecida alguns minutos antes, depois que ele abriu cerimoniosamente o freezer. Eu estava fazendo contas mentais: a grande caixa branca estava armazenada há mais de um mês. O aniversário de García Márquez foi no dia 6 de março e aquela tarde foi em 8 de abril.
Eu ainda não conseguia acreditar na minha sorte. Eu estava almoçando com um dos homens que mais admirava e sua esposa, Mercedes Barcha, na cozinha do apartamento em que moravam em Cartagena, num prédio que as pessoas chamavam de “A Máquina de Escrever”.
E ele, sendo um bom contador de histórias, não só compartilhou o que considerava o melhor sorvete do mundo, mas também os detalhes da relação que mantinha com Fidel.
Obviamente, também achei que era o melhor sorvete do mundo. Lembro-me de ser sabor baunilha, excepcionalmente cremoso, e eu estava morrendo de vontade de continuar comendo todas as colheres que ele me oferecia.
Mas fui criado como um “cachaco”, que é como as pessoas da costa caribenha chamam os nascidos em Bogotá. E nós, “cachacos”, somos ensinados a não revelar muito os nossos gostos, a não dizer tudo o que pensamos, e que uma bola de sorvete é suficiente. Finalmente, cedi.
Até hoje lembro como um dos meus almoços preferidos, para o qual estranhamente fui convidado devido à minha relutância em apreciar a literatura clássica.
A pergunta
Tudo começou algumas semanas antes, quando meu chefe e primeiro mentor jornalístico, Mauricio Vargas Linares, me disse que eu representaria a revista Semana no primeiro workshop da Fundação Gabo, então chamada Fundação para um Novo Jornalismo Ibero-americano, ou FNPI. Tinha sido fundada por García Márquez alguns meses antes, com o objetivo de melhorar a formação de jornalistas de língua espanhola.
Eu tinha visto García Márquez uma vez, quando ele visitou a revista. Nunca havíamos nos falado, mas ele sempre foi particularmente carinhoso com aqueles de nós que estávamos apenas começando a entender a profissão de jornalista.
Jamais esquecerei quando, durante um dos fartos almoços organizados ocasionalmente pelo dono da revista, chegou García Márquez. Apesar de ter um lugar reservado para ele na mesa principal com ministros e celebridades, percebeu que havia espaço na mesa mais distante, aquela ocupada pelos membros mais jovens da equipe editorial, e disse, apontando em nossa direção: “obrigado, mas vou sentar lá com os repórteres.”
O workshop da FNPI seria sobre crônicas jornalísticas, e a professora seria a jornalista mexicana Alma Guillermoprieto.
Eu tinha acabado de completar 23 anos e tentava aprender tudo o que podia com o seleto grupo de jornalistas experientes que produziam a influente revista semanal onde eu trabalhava. Eu não falava inglês e não tinha ideia do que era a revista The New Yorker, muito menos quem era Guillermoprieto.
Também nunca tinha ouvido falar do Diário do Ano da Peste, de Daniel Defoe, o livro que tínhamos que ler antes de ir para Cartagena.
Trata-se de um relato romanceado da peste que devastou Londres e seus arredores entre 1664 e 1666, que, como descobri mais tarde, García Márquez considerava um dos maiores relatos da história.
Durante aquela semana de workshop, Alma Guillermoprieto me ensinou que não é preciso ser pretensioso para ser profissional, que rigor é inegociável e que a melhor forma de tratar de questões importantes é através de histórias específicas, como ela tinha feito nas 13 cartas da América Latina originalmente publicadas em inglês na The New Yorker e compiladas no livro At the foot at the volcano I write (Ao pé do vulcão eu escrevo), que tinha acabado de ser traduzido para o espanhol.
García Márquez tinha plena consciência da admiração e da adulação que despertava nos dez jovens jornalistas selecionados para o workshop, mas fez o possível para baixar a temperatura emocional e a formalidade das sessões.
Ele nos tratou como se nos conhecesse desde sempre, e não creio que seja exagero dizer que um observador desavisado poderia facilmente dizer que ele era o mais entusiasmado de todos.
Para comemorar o fim do workshop, ele nos convidou para jantar na sexta-feira no La Vitrola, naquela época o restaurante onde a grande boemia cartagena se reunia, cenário de noites e conversas lendárias entre ele e artistas como Alejandro Obregón e Enrique Grau, apenas para citar alguns.
Passei boa parte da noite pensando qual seria o momento ideal para confessar a García Márquez que achava a literatura clássica terrivelmente chata e, por mais que tentasse me aprofundar nela, ela produzia em mim um tédio espantoso. Queria perguntar a ele se eu realmente precisava ler todos os clássicos para melhorar minhas habilidades jornalísticas.
Mas como diabos eu poderia admitir para ele minha simplicidade intelectual?
Enquanto lutava mentalmente contra minhas inseguranças, em meio ao barulho de pratos, copos e música ensurdecedora, ele pareceu se despedir de todos os alunos.
“Professor, mais uma coisa”, eu disse ansiosamente enquanto me levantava da cadeira e tentava ir em direção a ele.
Ele ergueu as sobrancelhas e senti que ele me deu permissão para continuar.
“Eu queria perguntar a você sobre literatura clássica e o que devo fazer para conseguir lê-la.”
“Quanto tempo você vai ficar em Cartagena?”, ele perguntou.
“Decidi ficar e curtir o fim de semana”, eu disse.
“Muito bem, me ligue amanhã.”
“Mas eu não tenho seu número de telefone…”
“650143”, ele ditou…
Numa das muitas coisas idiotas que fiz quando jovem, decidi tentar memorizar o número sem anotá-lo.
“O que há de errado com você, repórter?”, ele disse com um sorriso enquanto me oferecia sua caneta. “Anote em um pedaço de papel, ou você esquecerá e se arrependerá pelo resto da vida.”
A lista
Naquela noite dormi pouco. A cada 20 minutos, eu verificava se já era um horário civilizado para ligar. Quando o relógio finalmente deu nove da manhã, ousei discar os números anotados.
“Merce, temos planos para o almoço?” — perguntou o escritor à esposa, interrompendo brevemente nossa conversa.
“Tudo bem, então direi a Alvarez para vir”, acrescentou.
Assim que aceitei sua oferta, liguei ansiosamente para meu chefe.
“O que devo fazer? O que devo levar? Como devo me vestir?”
“Não seja idiota, nada do que você trouxer ou fizer irá impressioná-lo. Não pense nisso, vá e seja você mesmo, não finja ser outra pessoa e aproveite o almoço”, ele sabiamente me aconselhou.
Decidi vestir minha camiseta e jeans de sempre e esperei ansiosamente pelo meio-dia para me dirigir ao encontro em seu apartamento.
Comemos peixe frito, banana frita e arroz de coco no almoço e, depois do sorvete, finalmente me atrevi a falar.
“Professor, devo confessar que fico terrivelmente entediado com os clássicos e não consegui ler nenhum deles.”
Ele me contou que quando jovem também via os clássicos com desdém, até que uma vez ouviu de um mentor que ele nunca se tornaria um grande escritor se não conhecesse os clássicos gregos.
E me disse que, quando os descobriu, se apaixonou por eles. Ele falou de sua obsessão por Édipo e de como sempre foi seduzido pela história de um homem que queria investigar quem havia matado seu pai, apenas para concluir tragicamente que o próprio era o assassino.
Pediu que eu fizesse um esforço para superar o tédio que a língua antiga gerava em mim e me concentrar nas histórias fabulosas que contavam.
“E se você tivesse que fazer uma lista dos clássicos essenciais, quais estariam incluídos?”, perguntei.
“Vamos fazer a lista”, disse ele entusiasmado enquanto abria rapidamente seu caderno de repórter e começava a escrever a lista que ilustra esta história e que transcrevo abaixo como ele a escreveu (traduzida para o português):
1. A Bíblia
2. Mil e Uma Noites
2a Platão e Aristóteles
3. A Odisseia
3a Os Filósofos Ilustres. Diógenes Laércio
4. Sófocles: Édipo
5. Os Doze Césares (Suetônio)
6. Plutarco
7. A Divina Comédia (Inferno)
8. Horácio (Poesia)
9. El mio cid (Romances)
10. Amadis da Gália
11. Dom Quixote
12. Poesia: Idade de Ouro Espanhola
13. Gargântua e Pantagruel
14. Paraíso Perdido – Milton
15. Cronistas das Índias
16. –
Isso é o que eu tenho. Até hoje, lamento o grande erro que cometi ao não anotar o que ele me contava sobre cada obra enquanto ele fazia a lista. Não me lembro por que ele usou 2a e 3a, por exemplo. Qual era a lógica por trás dessa subdivisão? Também não me lembro por que o número 16 permaneceu vazio.
Estou ciente de que esta lista, que decidi compartilhar hoje, no décimo aniversário da sua morte, teria sido mais útil se contivesse observações mais precisas sobre o motivo pelo qual incluiu cada obra. Talvez seja por isso que sempre tive uma certa relutância em compartilhá-la.
Mas, recentemente, ao ver a emoção que a lista pendurada em uma das paredes da minha casa despertou numa amiga bibliófila, pensei que, independente de quaisquer erros jornalísticos na história que conto, poderia ter algum valor anedótico para aqueles que vierem a conhecê-la.
Também lembrei da grande frase que o próprio García Márquez disse ao publicar suas memórias: “A vida não é o que se viveu, mas o que se lembra e como se lembra para contar”.
Ao longo dos anos, li algumas Crônicas das Índias, Édipo, Mil e Uma Noites, A Odisseia, passagens da Bíblia, da Divina Comédia e alguns poemas da Idade de Ouro. Mas creio que o autor daquela lista maravilhosa e improvisada em uma tarde de abril não teria ficado descontente comigo por eu não ter dado o devido respeito a cada uma de suas recomendações.
É o que penso, a título de consolo, quando me lembro de outro conselho que ele me deu naquela tarde inesquecível, quando, em outra confissão constrangedora, admiti que ainda não tinha conseguido ler Dom Quixote: “O que recomendo é que você deixe o livro em cima do vaso sanitário, para cada vez que você sentar lá você ler um pouco.”