Arranjo em Preto e Branco, de Dorothy Parker
Conto publicado originalmente em 1927, na revista ‘The New Yorker’. No Brasil está publicado em ‘Big Loira e outras histórias de Nova York’, ed. Companhia das Letras, 1987.
A mulher com papoulas de veludo rosa entrelaçadas em seus cabelos excessivamente dourados atravessou o grande salão lotado num andar curioso, passadas largas, enviesadas, e agarrou com força o braço de seu anfitrião.
“Agora te peguei!” ela falou. “Agora você não me escapa!”
“Olá!”, disse o anfitrião. “Ora… Como vai você?”
“Estou muito bem”, ela respondeu. “Simplesmente ótima! Ouça, eu quero que você me faça um grande favor. Você faz? Por favor? Por favorzinho?”
“O que é?” ele perguntou.
“Ouça, quero ser apresentada ao Walter Williams. Sou louca por esse homem, sabe? Quando ele canta! Quando ele canta aqueles spirituals! Sabe, eu disse ao Burton ‘Ainda bem para você que o Walter Williams é preto’”, eu disse, “‘ou você teria muitos motivos para ter ciúmes’. Gostaria mesmo de conhecê-lo. Gostaria de dizer a ele que já o ouvi cantar. Será que você pode ser um anjo e me apresentar a ele?”.
“Claro”, disse o dono da casa. “Pensei que você já o conhecesse. A festa é para ele. Mas onde é que ele está?”.
“Lá, perto da estante. Mas é melhor esperar que aquelas pessoas acabem de falar com ele. Eu acho que você está sendo maravilhoso oferecendo esta festa maravilhosa para ele, permitindo que ele conheça todas essas pessoas brancas e tudo. Ele não está muito grato?”.
“Espero que não”, o anfitrião respondeu.
“Pois eu acho isso sensacional”, ela disse. “Acho mesmo. Não vejo porque conhecer pessoas de cor não seja coisa perfeitamente natural. Não tenho nada contra, nadinha de nada. Já o Burton é o oposto. Bem, você sabe, ele é da Virgínia e você sabe como eles são”.
“Ele veio com você?”, o dono da casa perguntou.
“Não, ele não podia”, ela respondeu. “Hoje estou de cigarra. Na hora de sair eu disse: ‘Sabe-se lá como vou me comportar, hein?’. Ele estava tão cansado que não podia nem se mexer. Não é uma pena?”.
“É..”, ele respondeu.
“Espere até eu dizer a ele que conheci Walter Williams”, ela falou. “Ele só vai faltar morrer. Nós brigamos muito por causa dos pretos. Falo à beça, sem parar, digo tudo que penso, fico tão nervosa. ‘Não seja bobo, eu digo’. Mas uma coisa eu preciso dizer em favor de Burton, ele é muito mais aberto que a maioria desses sulistas. Na verdade ele gosta muito dos pretos. Ele fala sempre que não teria empregados brancos. Você sabe, ele teve uma ama preta, uma verdadeira mammy, que ele simplesmente adora. Sempre que ele vai em casa ele vai na cozinha vê-la. Vai mesmo, sabe, até hoje. O que ele sempre diz é que não tem nada contra os pretos enquanto eles estão no lugar deles. Ele está sempre fazendo coisas para eles, dando-lhes roupas e não sei mais o quê. A única coisa que ele diz é que não sentaria numa mesa com um deles nem por um milhão de dólares. ‘Ih! eu digo para ele, eu fico com nojo quando você fala assim’. Eu sou uma peste com ele. Não sou?”.
“Oh, não, não”, disse o anfitrião. “De modo algum”.
“Sou sim”, ela disse. “Sei que sou. Coitado do Burton! Mas é que eu… eu não me sinto assim, de jeito nenhum. Não tenho nenhum sentimento contra as pessoas de cor. Na verdade, sou louca por alguns deles. São como crianças, fáceis de lidar, sempre cantando e rindo, alegres. Você não acha que eles são as pessoas mais felizes que você jamais viu? Honestamente, só de ouvi-los já fico com vontade de rir. Gosto mesmo deles. De verdade. Sabe, ouça, eu tenho uma lavadeira preta, há muitos anos, e gosto muito dela. Ela é uma figura! E sabe de uma coisa, para mim ela é uma amiga. É assim que penso nela. Como eu digo para o Burton, ‘Pelo amor de Deus, somos todos seres humanos! ’ Não somos?”
“Sim”, respondeu o dono da festa. “Claro”.
Dorothy Parker (22 de agosto de 1893 – 7 de junho de 1967) considerada uma das mais brilhantes escritoras americanas de sua geração, contista, poeta, crítica literária, roteirista de cinema. “Dorothy é uma mistura de Chapeuzinho Vermelho com lady Macbeth”, nas palavras do jornalista Alexander Woollcott, um de seus companheiros na famosa Algonquin Round Table (Távola Redonda do Algonquin). Dois dos filmes com roteiro de sua autoria receberam o Oscar, mas sua carreira em Hollywood foi encurtada por seu envolvimento em política, o que a levou a figurar na ridícula, mas nem por isso inócua, lista negra do macartismo. Frasista emérita, famosa pelo espírito crítico, e por uma inteligência superior, eis a que em minha opinião a descreve muito bem: “Salário não é problema: quero somente o suficiente para manter corpo e alma separados”.
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